Conquistadores de Almas

Extractos de todos os capítulos do livro com este título

quinta-feira, julho 06, 2006

Das origens ao movimento estudantil

Foi no liceu Camões, dos 15 para os 16 anos, que comecei a des­per­tar para as questões políticas. Pas­sei todo o ano lectivo vi­vendo em Que­luz e indo todos os dias para Lisboa. Aqui, além do con­tacto com a Filosofia me agu­di­zar as an­gústias existenciais que já trazia, co­nhe­ci um certo em­brião de mo­vimento es­tudan­til, que apro­vei­tava as aulas de Moral, de Filo­sofia e de “Organiza­ção Polí­tica” para colo­car os pro­blemas da guerra, da in­justiça social e da opres­são, em­bora na ba­se de ge­neralidades. Era o pa­dre res­ponsável pelas aulas de mo­ral que pro­movia este tipo de dis­cussões, mas já o pro­fes­sor de “Organi­za­ção Política” e de Filoso­fia, onde se pro­vava a exis­tência de Deus como pro­grama obriga­tó­rio, e que acu­mu­lava esse lu­gar com o de ins­trutor da Moci­dade Portu­guesa, era fonte de constan­tes con­fli­tos.
Foi nessa altura que conheci o Fred, meu colega de turma, em­bora nunca ti­vesse parti­cipado no seu grupo con­tes­tatá­rio e ele ti­vesse en­tão de mim a ideia de que eu era um reac­cionário. Real­mente havia uma coisa que eu não po­dia supor­tar nele e nos amigos: o anti-colo­nialismo, que era nes­ses colegas uma atitude que não acei­tava discus­sões.
Condenar o direito dos portugueses a Angola, para quem nascera lá, numa terra onde tudo fora cons­truído pelo meu pai, o meu avô, e pelos pais dos meus amigos de infância, era-me uma afronta! Para o Fred, natural­mente, as mi­nhas posi­ções eram as do regime que ele odi­ava, e só anos depois eu viria a com­preender que aquilo era de família, dado o pai dele ser um velho mili­tante do Par­tido Co­mu­nista.
O Fred, no entanto, com o seu cabelo comprido e a liberdade que o pai lhe dava para ir assistir ao grande “mee­ting” internacional de rock na ilha de Man, era fonte de inveja para mim, a quem o meu pai não tolerava tais des­mandos. Mais de uma vez ousou ele ir para o liceu sem gravata, me­re­cendo com isso a expulsão da aula pelo professor de “Organização Polí­tica”. Mas eram acções que eu me limitava a admirar.
Deste modo, foi apenas superficialmente que as preocu­pa­ções polí­ti­cas da­queles jovens me afecta­ram ...

Do movimento estudantil ao marxismo

Finalmente a Direcção resolveu lançar-se no trabalho de massas e en­viou um dos seus elementos, o Rui Hen­ri­ques, para orientar os associa­tivos do 1º ano. Não conse­guindo dar ao Movi­mento Asso­cia­tivo, como movi­mento de mas­sas, a tal alternativa re­volucio­nária de­duzida em teoria da nova de­finição de Demo­cra­tiza­ção do Ensino, a Direcção procu­rou apenas fa­zer avançar a Re­forma o mais possí­vel, li­gando às massas os qua­dros as­sociati­vos através da “Aber­tura aos Cur­sos”. As­sim se desenca­deou um conjunto de mo­vimenta­ções por re­es­trutu­rações das cadeiras, por alarga­mento dos funis se­lectivos, contra o autorita­rismo dos cate­dráti­cos, objec­ti­vos imediatos capa­zes de mo­biliza­rem os estu­dantes e em torno dos quais se procu­ra­va propa­gandear a cons­ci­ência da fun­ção da Uni­versidade na luta de classes, a de formação dos “cães de guarda da burguesia”. E, da pre­missa de que a Universidade servia o ca­pital, o corolá­rio prático que es­ponta­neamente se dedu­zia era o de­sejo de a des­truir, o que levava a becos sem saída para a multidão de estudan­tes, mas de con­clu­sões ób­vias para os as­socia­tivos: a necessi­dade de ultrapas­sar os limites da luta na Uni­versi­dade.
Como novato e inexperiente que eu era, nestas lutas do 1º ano tive pe­quena parti­cipação e não che­guei a ti­rar, nem de longe, as con­se­quên­cias fi­nais so­bre os limi­tes do Movimento Associativo. Apenas na eliminação da ca­deira de Geometria Descritiva e no correspondente afastamento do seu catedrático tive uma participa­ção sig­ni­ficativa. Como fora a disciplina em que eu até sempre tivera melhores notas, o ponto de vista da maioria dos estudantes conservado­res de que que­ría­mos aca­bar com ela por oportunismo podia ser rebatido pelo meu exemplo, que ao argumento de que a cadeira valia pelo seu carácter for­mativo rebati que para formação do in­telecto era preferível jogar xadrez. Mera retórica, pois nunca tive paciência para tal passa­tempo…
In­cons­ciente e esponta­nea­mente, lutava pela des­truição da Uni­versi­dade, dado que ela só servia o ca­pi­tal, radi­cali­zando as lu­tas o mais possível. Estas lutas foram im­portantes sobretudo para a cons­tru­ção duma forte coe­são dos as­so­ciativos do 1º ano e para o seu enrai­za­mento na As­so­ciação e na comba­tivi­dade re­volu­cionária. Foi de facto nestes pro­cessos que se re­for­ça­ram os meus laços com colegas como o Fred, a Margie, e o Alberto Ma­tos, que eram bons oradores e muito esti­ma­dos pelos estu­dan­tes que nos apoia­vam.
Evidentemente, a face política concreta do país manteve-se-me in­tei­ra­mente des­conhecida. Ou melhor, a face das lutas popu­lares, porque na Associação os líderes discutiam muito as contra­di­ções de inte­res­ses entre in­dustriais, ban­queiros e lati­fundiários. Do povo só soube, por cartazes, das manifes po­pula­res do 1º de Maio desse ano de 1970 no Bar­reiro, de certas greves e de prisões anun­ciadas pela Comissão Nacional de Socorro aos Pre­sos Políti­cos. Com regulari­dade, os jor­nais relatavam julgamentos políticos e, de vez em quando, al­guns eram de estudantes oriundos da Diamang, mais velhos que eu e fi­lhos de “fu­mos” do Dundo que eu não che­gara a conhecer, como os do Eng.º Oli­veira, os do Eng.º Rego e a filha Diana do an­tigo director-geral Eng.º An­dringa, esta acu­sada de cola­bora­ção com o próprio MPLA...! Coisa que me enchia de or­gu­lho e, ao mesmo tempo, algum medo...

Do marxismo à descoberta da Organização

No início de Fevereiro o Carlos António, após uma reunião de as­so­ciati­vos, abor­dou-me e pergun­tou-me se eu que­ria tra­balhar po­liti­ca­mente fora da As­sociação.
O Carlos era um indiví­duo de má ca­tadura, franzino, baixinho, com man­chas na cara, apagado como líder e com dificuldades em falar em público, bastante auto­ritário e an­ti­pático e com quem eu nunca falara; mas, como perten­cia à Di­recção presi­dida por Vieira Lopes , inte­grava-se naquele nú­cleo que eu a­d­mi­rava pro­funda­mente e por quem tinha uma con­fiança cega. Por isso o seu con­vite dei­xou-me nas nu­vens, maravi­lhado e cheio de con­ten­tamento. Humilde­mente aceitei, claro, pois militar po­litica­mente, ser digno dessa honra, era a coisa que eu mais ambicio­nava na vida, e si­multa­neamente fi­quei entonte­cido com a pe­sada res­ponsabilidade que me acabava de ser con­fi­ada, dado não me sen­tir à altura dela.
Houve então uma reunião na casa dos pais do Fred, num ambi­ente de semi-pe­num­bra em que a ten­são mal me permitia respi­rar. Era uma casa numa Ave­nida Nova, zona rica de hippies e dro­ga­dos fi­nos, que eram os que havia na época.
O Carlos avi­sara-me para tentar observar se era seguido. Esta­vam lá, além de mim e do Carlos, o Fred e o Rui Hen­riques. Falou-se sobre co­lonia­lismo, e o Carlos leu em voz alta o texto “Os comu­nis­tas e a questão colo­nial”, que eu rece­bera na caixa do correio cerca de um ano antes e que, viria mais tarde a saber, fora pre­cisamente o Carlos quem o lá colocara. Percebi pouco e teria pre­fe­rido lê-lo so­zi­nho, pau­sada­mente, mas o res­peito pelo Carlos não mo permitiu dizer. Este do­cumento fora um dos re­digidos por Francisco Mar­tins Rodrigues em 1964, e era uma crítica teó­rica à linha de Cu­nhal no PCP. Obvia­mente um texto difícil para um re­cém-ini­ciado na teo­ria marxista e des­conhece­dor da vida clan­des­tina por­tu­guesa. Só o Fred, cujo pai fora do PCP e o educara contra o regime, talvez o entendesse. Eu, do colonia­lismo, a única coisa que percebia era a expe­riência pes­soal que ti­vera, e que des­crevi de novo àqueles ca­maradas.
O Carlos falou depois em enviar textos a mi­lita­res, para os levar à de­ser­ção, e em reconhecimen­tos a fazer em quartéis, mas sem se con­creti­zar nenhum plano con­creto. Era a ac­ção prá­tica que o mar­xismo exigia sem­pre. Li­mitei-me a ou­vir tudo com grande humil­dade. O Rui Henriques e o Fred pouco fa­la­ram.
Dias depois houve nova reunião em casa do Carlos que, oriundo das Cal­das da Rainha, vivia num aparta­mento alugado com a irmã, mas desta vez o Rui Henriques não foi; o Car­los voltou a ler em voz alta um docu­mento, o “Ban­deira Ver­melha” nº 1, jornal teó­rico do MRPP, e desta vez ousei sugerir que tal­vez fosse me­lhor lê-lo cada um e dis­cutirmo-lo de­pois. O Carlos olhou-me rispi­damente e disse que era ele quem di­ri­gia os méto­dos de tra­ba­lho. Claro que me ca­lei logo, muito en­ver­gonhado. Não voltou a haver reu­ni­ões.
Por isso, dias depois abeirei-me do Carlos e perguntei-lhe quando é que vol­tá­va­mos ao trabalho.
O Carlos levou-me à sala da Direcção da Associação e, de uma ga­veta, re­ti­rou um molho de pan­fle­tos varia­dos que me entre­gou; jor­nais como “Ser­vir o Povo” (UEC(m-l)), “Unidade Popu­lar” (CM-LP), textos da EDE, outros do MRPP, colec­tâ­neas como “África Li­vre”, “Cader­nos Necessá­rios”, etc. Ou seja, um conjunto ex­trema­mente ecléctico que me permitia um primeiro co­nhe­ci­mento da vida polí­tica clandestina no país e que não comprome­tia o Carlos.
Como a mistura dos textos me confundia, dividi a papelada por orga­ni­za­ções e iniciei meticulo­sa­mente o seu estudo. Comecei pelo “Servir o Povo” e pelo “Uni­dade Popular” e, como tudo o que lá vinha me pa­re­cesse con­forme com os livros que recente­mente lera, e como se ata­cava o revisio­nis­mo do PCP, não achei nada de mau nos textos. Foi o que disse ao Carlos num en­con­tro pos­te­rior em sua casa. O Fred tam­bém já deixara de compa­re­cer.
O Carlos no entanto não partilhou a minha apreciação positiva dos papéis e apontou-me a se­guinte fraqueza neles: não havia lá ne­nhuma análise con­creta da vida portuguesa. Tudo se resumia a cita­ções dos “clás­sicos” (a plêi­ade de profetas constituída por Marx, En­gels, Lenine, Estaline e Mao), pro­clamações e palavreado. Cego na minha confiança nele, na sua sa­be­do­ria e consciência po­lítica, iden­tifi­quei-me ime­diatamente com a sua opi­nião. E depois, re­flec­tindo, con­si­derei que se verifi­cara ali a desobediência ao que Mao indicava nas suas obras: a ne­cessi­dade de análise con­creta, de “inqué­rito” e de in­vestigação, de combate ao dogma­tismo e ao culto do li­vro. Coisa que também sublinhara Lenine: “a essência do marxismo é a análise con­creta da rea­lidade concreta”.
Seguidamente estudei a papelada da EDE e do MRPP e achei que o es­forço te­órico ali realizado já satisfazia a necessidade de análi­ses con­cretas, no­mea­da­mente no “Bandeira Vermelha”. Por isso disse ao Carlos, no fim do es­tudo, a minha opinião positiva. Mais uma vez ele não partilhou da mi­nha opinião e apontou-me algu­mas contradições dos textos, que não com­preendi bem. No en­tanto de novo a con­fiança ili­mitada no expe­ri­ente Carlos me le­vou a identi­fi­car cega­mente com o seu de­sa­grado pelo MRPP.
E assim de um modo geral sucedeu com os outros textos e orga­ni­za­ções.Por fim o Carlos emprestou-me um volumoso jornal de 70 pági­nas, o “Viva o Comunismo!” n.º 2/3, órgão teó­rico dos CCRM-L e, como a este jornal não fez qualquer crítica, concluí que era ele o da sua sim­patia e por isso, e tam­bém porque a riqueza cultural das análi­ses sa­tisfazia a minha cu­riosi­dade acerca da política na­cional, e ainda por­que a apreciação dos in­tentos liberali­zan­tes e re­for­mistas do mar­ce­lismo en­caixava com o que diziam Mariano Gago e Vieira Lopes acerca da Re­forma do en­sino de Veiga Simão, por tudo isso os CCRM-L se torna­ram da mi­nha sim­pa­tia, como se fos­sem um clube de futebol...

As franjas da Organização

Ora o “Viva o Comunismo!” dos CCRM-L considerava que o Par­tido Comu­nista Portu­guês fora sem­pre um Par­tido revisi­onista, veicu­lando a ide­o­logia libe­ral no seio do operari­ado, não pas­sando assim de um agente da bur­gue­sia, e que isso resul­tava ci­entificamente de causas infraestru­turais, a saber a fraca industri­aliza­ção do país e a re­sul­tante dis­persão do seu ope­rariado. O desen­volvimento eco­nómico aca­bara, porém, por pro­duzir concentra­ções operá­rias que haviam cri­ado a possibili­dade objectiva de uma consci­ência comunista nos anos 60, quando ocor­rera a cisão maoísta no PCP, mas só agora com o mar­ce­lismo e a sua recu­peração prática do pró­prio refor­mismo do PCP é que esta­vam tam­bém cri­adas as con­di­ções subjectivas para a to­mada de consciên­cia comunista pelo prole­tari­ado. A aná­lise pare­cia-me uma aplicação magistral do mar­xismo!
Como entretanto no “Que faire?” eu aprendera a impossibili­dade de a ideolo­gia comunista ser es­ponta­nea­mente pro­duzida pelo Movi­mento Ope­rário, acreditei pia­mente no carácter bur­guês que sempre tivera e con­ti­nuava a ter o Mo­vimento Operá­rio por­tuguês e, junta­mente com o mal-es­condido des­prezo do Vieira Lopes pelas lutas ope­rárias con­du­zidas pelos revi­sionis­tas, assi­mi­lei idên­tica atitude pelas lutas ope­rárias existen­tes, e pela sua Histó­ria passada. Só os CCRM-L é que, sur­gidos no exacto mo­mento em que estavam cria­das as con­di­ções his­tóricas para que o ope­ra­ri­ado portu­guês fi­nal­mente ad­quirisse uma consciência co­munista revolucioná­ria, só eles é que re­pre­senta­vam o ver­da­deiro começo do movimento comu­nista pro­letá­rio em Portugal!
Estas ideias eram, no entanto, uma amálgama confusa na minha mente quando, sob a condução do João Vi­eira Lopes , comecei a tra­balhar fora da Associa­ção e da Univer­sidade.
O trabalho político que desembocou no meu recrutamento para os CCRM-L, no fim de Setembro desse ano de 1971, desenvol­veu-se em dois níveis organi­zativos: por um lado, reuniões com vários outros estu­dantes e o João, de ca­rácter ilegal, reuniões de debate ideoló­gico e que se iriam pouco a pouco tor­nando mais espar­sas até ao seu desa­pareci­mento. Por outro lado uma liga­ção pes­soal ao João, onde se fa­ria a mi­nha aprendiza­gem de re­gras de clandesti­ni­dade, se discutiria o meu esforço de liga­ção ao meio operário e onde se apro­fundaria a dis­cussão das linhas políti­cas das diver­sas orga­niza­ções.

quarta-feira, julho 05, 2006

A implantação na classe operária

Ora a Standard Electric do Filipe era uma fábrica que construía rádios e de­pen­dia da ITT, o que a tor­nava muito conhe­cida. Tinha duas sec­ções: uma em Lisboa, com centenas de traba­lha­do­res, e outra em S. Gabriel de Cas­cais, com alguns milha­res.
Além de uma secção de escritórios, em que o PCP possuía im­plan­ta­ção, e da administração, a fá­brica de Lis­boa distribuía os seus ope­rá­rios por vá­rias sec­ções, o que tornava o con­vívio entre eles quase im­possível e impe­dia que os operários se conse­guis­sem unir ou se­quer contactar.
Existia na fábrica uma disciplina rigorosa. Dema­siado tempo no W.C. podia si­gni­ficar uma sus­pen­são de tra­balho, tal como um li­geiro atraso na chegada ao em­prego. A cantina era usada para al­moço a ho­ras diferen­tes para cada sec­ção, o que mais dificul­tava os contactos. E du­rante o trabalho os che­fes con­trola­vam com ­ris­pidez o esforço e a eficiência dos trabalha­do­res.
O trabalho mais pesado e monótono era o das mulheres. Forma­vam as ca­deias de montagem donde saíam os aparelhos que de­pois eram testados pe­los ope­rários qualificados como o Fi­lipe. Ga­nhavam uma média de mil es­cu­dos por mês, embora os ope­rários especializados ganhas­sem cerca de cinco mil, e os rit­mos de tra­balho eram de uma intensi­dade tre­menda. Como termo de compa­ração, a minha mesada era então de três mil escu­dos e dava à justa para viver.
Seguindo a minha orientação e a do Vieira Lopes , o Filipe come­çou a sondar os cole­gas. As operá­rias mais nu­mero­sas e des­qualifica­das sen­tiam-se bru­tal­mente humilha­das na forma como eram tra­tadas e eram re­ceptivas a ac­ções colec­ti­vas de rei­vindi­ca­ção, mas não mos­travam qual­quer inte­resse por dis­cus­sões e leitu­ras po­líti­cas fora dos seus problemas concretos e imediatos. Os ope­rá­rios qualifi­cados como o pró­prio Filipe, e com os quais este acama­ra­dava mais, eram de certo modo uma elite na fábrica e, embora mostrassem com­bati­vi­dade e sensi­bili­dade quanto a pro­ble­mas concretos, tam­bém não mostravam inte­resse por dis­cus­sões nem lei­turas políticas. Só um ope­rá­rio se viria a mostrar receptivo a esse tipo de conversas, mas um dia des­co­bri­mos que ele es­tava li­gado ao PCP: tentou fa­zer cir­cular na fá­brica um abaixo-assi­nado rei­vin­dica­tivo, foi amea­çado por um chefe, as­sus­tou-se e fe­chou-se ao Fi­lipe.
As operárias adolescentes, e que eram a maioria, so­nhavam era com um casa­mento que lhes desse uma nova vida, enquanto as mais ve­lhas, já casa­das e com filhos, que sa­biam como o casa­mento ape­nas re­pre­sen­tava um re­dobrado en­cargo, eram mais decididas e luta­do­ras, mas muito de­pen­den­tes das de­ci­sões dos mari­dos que evidente­mente as desencorajavam de se en­volve­rem em quaisquer liga­ções pessoais, mesmo políticas. Por De­zembro, após pou­cos meses de es­forços, este tra­balho de corre­dor do Filipe saldara-se pelo im­passe.
No entanto, a receptividade destes trabalhadores para a luta co­lec­tiva por ob­jecti­vos imediatos era extraor­diná­ria: mais de uma vez a in­justa suspen­são de um colega levara a uma espontânea pa­rali­sa­ção do tra­balho, e au­mentos anu­ais de salário injusta­mente reparti­dos ha­viam levado a idêntica atitude por parte dos operá­rios espe­cializados. Se a nossa preocupação fosse orien­tada para a ac­ção colectiva as con­di­ções eram óptimas mas, como ape­nas pro­curá­va­mos con­tac­tos a doutrinar fora da acção reivindi­cativa, o traba­lho não pro­gre­dia.
Com o Rui passou-se basicamente a mesma coisa.
Depois de se empregar na Jonhson & Jonhson foi colocado a tra­ba­lhar por tur­nos numa máquina. Os seus cama­radas, jovens como ele, eram brinca­lhões, indis­cipli­na­dos, e quase to­dos ti­nham ca­das­tro, pois à rufia­gem pró­pria da idade somavam o desem­prego fre­quente por ainda não terem feito a tropa, e daí os rou­bos. Era difí­cil conseguir deles uma luta firme e conscien­ci­osa e ti­nham pouca dis­ciplina e al­guns há­bi­tos de marginais, pois como eram sol­tei­ros e ainda não ti­nham famí­lia a sustentar a vida era-lhes su­por­tável.
Todavia, o tra­ba­lho de embalagem era feito por mulheres, me­nos jo­vens e ingé­nuas que as da Stan­dard Electric e muito uni­das e com­ba­tivas. Sem con­se­guir suster a sua pró­pria impetuo­sidade, o Rui começou a agi­tar o pes­soal da fá­brica e de­pressa es­sas operá­rias o pro­curaram para que ele lhes ensi­nasse como rei­vindi­car, tal como su­cedera ao Filipe na Stan­dard. Mas eu e o João fi­ze­mos to­dos os es­for­ços para o impedir de se en­volver nes­sas ac­ções colectivas para que era solici­tado, pro­cu­rando canalizá-lo para sim­ples con­tac­tos dis­cre­tos e de mentali­zação pes­soal que conduzis­sem alguns operá­rios até nós, com vista à tal luta contra o atraso ideoló­gico. Isso, po­rém, não deu quaisquer fru­tos e, em Dezembro, o Rui, frus­trado, ali­nhou numa acção de destrui­ção es­pon­tânea de mate­rial da fá­brica com os seus jo­vens ca­mara­das e foram todos despe­di­dos.

O comité "Luta Popular"

O João Vieira Lopes apresentara-se-me como membro dos CCRM-L no dia 30 de Se­tem­bro, no meu quarto da casa de Queluz. Avi­sou-me com gra­vi­dade que se fossemos presos possi­vel­mente a PIDE nos re­serva­ria penas de pri­são bas­tan­tes longas e con­vidou-me a in­gres­sar, o que me deixou mui­tís­simo emocio­nado e or­gu­lhoso por ter me­re­cido tal honra.
O Comité “Luta Popular” a cuja estrutura passei a pertencer era consti­tuído pelo Vieira Lopes , que tinha o pseudónimo de “Al­Fredo”, pelo Carlos An­tónio, que ti­nha o de “Auré­lio”, e por mim, que fi­quei pro­vi­soria­mente com o de “Aní­bal”, que escolhi de modo a sermos o Co­mité dos “ases”. Estava entretanto expli­cado por que ra­zão quando o Carlos dei­xara de se reunir co­migo, na Pri­ma­vera ante­rior, tinha apare­cido o Vieira Lopes a substituí-lo. Esta­vam combina­dos, nas sombras da clandesti­ni­dade!
No Comité tí­nhamos os três iguais direi­tos e de­ve­res e as deci­sões eram to­ma­das por maioria, em­bora o tra­ba­lho de implan­ta­ção ope­rá­ria fosse em se­pa­rado: eu e o João por um lado, o Carlos por outro. O controlo sobre o Co­mité era exercido do estran­geiro, por um membro do Secretariado do Co­mité de Co­ordenação e Re­dac­ção, de pseudó­nimo “Mi­guel”, e que pouco depois Vieira Lopes me diria ser o pró­prio secretá­rio-geral, João Ber­nardo “Tiago”, o funda­dor dos CCRM-L.
Como a prioridade da Organização era a luta contra o atraso ide­o­ló­gico, a qual fora definida ainda antes da cri­ação dos CCRM-L em 1969, nas famo­sas “Car­tas” com que João Ber­nardo “Tiago” cin­dira, em Paris, do CM-LP de Eduíno Gomes “Vilar”, procurei logo de en­trada levar a cabo com disci­plina e método as directri­zes da Di­rec­ção sobre o estudo do mate­rial por ela edi­tado­.
O Comité “Luta Popular” pos­suía dois ca­cifos no Pavi­lhão Cen­tral do “Téc­nico”, alugados sob fal­sos núme­ros, e de cu­jos res­pectivos cadea­dos adquiri cópias das chaves­. Depa­rei logo de início com o caos or­ganiza­tivo nos caci­fos! Monta­nhas de fo­lhas impressas do “Viva o Co­munismo!” e sem arru­ma­ção mis­tura­vam-se com circu­la­res inter­nas, inúmeros pan­fletos de ou­tras or­ganiza­ções e cópias de relató­rios, tudo em grande confu­são. Le­vou al­gum tempo a que o Carlos de­ci­disse dar a isto um mínimo de dis­ci­plina que me per­mi­tisse come­çar a es­tudar as circulares de que fal­ta­vam ­algu­ns núme­ros, e certas zo­nas dos cacifos estavam-me inter­ditas devido a terem có­pias dos re­lató­rios anterio­res do Comité.
A maioria das primeiras circulares, emitidas em 1970, eram de aná­lise e crí­tica de números do “Avante”, do “Servir o Povo” e da “Uni­dade Popu­lar”, e por­tanto deviam obvia­mente ser acompa­nhadas da lei­tura dessa mesma im­prensa con­forme, aliás, era or­de­nado nas pró­prias circulares. Sucedera no en­tanto que o Comité per­dera essas pu­blica­ções e por isso simples­mente não existiam. Até ao Natal de 71, con­tudo, estudei-as o melhor que pude, bem como todos os núme­ros do “Viva o Co­mu­nismo!”, re­forçando com isso a for­mação doutriná­ria que vinha a adquirir.
Escusado será realçar as precauções com que este estudo era feito. Temia sem­pre ser observado a abrir e a fe­char os cacifos, ou a ler as circulares, e por isso procu­rava entrar no anexo onde estavam os caci­fos sem ser visto quer pelos contí­nuos, sempre suspei­tos de serem in­formado­res da PIDE, quer por es­tu­dan­tes des­co­nheci­dos, e nunca lhes mexia quando al­gum estu­dante ou a empre­gada da lim­peza esti­ves­sem a ob­servar, para que não sou­bessem quais eram os meus. Reti­rava e colo­cava o material sempre com o co­ração na boca e a toda a pressa, e estas ope­rações provoca­vam-me uma tal ten­são que pro­cu­rava reduzir o seu número o mais pos­sível. Normal­mente ti­rava do ca­cifo a pasta onde esta­vam as cir­cula­res que pro­curava e metia-a numa pasta maior mi­nha; ia ao W.C., fe­chava-me lá a retirar o ma­te­rial que queria, e voltava à sala dos caci­fos para voltar a guar­dar a pasta. As­sim re­duzia a se­lecção do material a uma ope­ra­ção de abrir e fe­char o ca­cifo muito rá­pida. Acima de tudo eu te­mia que a PIDE suspeitasse dos cacifos e tentasse lo­cali­zar os dos ti­pos suspei­tos como eu. Se havia nisto a devida pru­dên­cia era ao João Vieira Lopes que o devia, na me­dida em que era ele o meu edu­ca­dor conspi­ra­tivo.
A leitura, feita de preferência no interior do Instituto, em princí­pio mais res­guar­dado da PIDE, ti­nha de a fa­zer sempre tenso de receio e de frio, nos jar­dins da escola…

A intervenção no movimento estudantil

Este círculo de admiradores começou a desenvolver-me o gosto pelas cita­ções livrescas, o espírito inquisidor relativa­mente aos “desvios” doutriná­rios dos outros e o prazer de me sentir adu­lado pelos mais novos e res­pei­tado pelos ele­mentos dos outros grupos.
Convivia também bastante com associativos temperados, como o Al­cobia, o Fer­nando B., o Bran­dão, o Felis­berto e o João Elviro, tendo ad­qui­rido o há­bito das ceias de conversa nas cervejarias próxi­mas do Técnico, os “Moi­nhos” e a “Portugá­lia”, até às tantas da noite e come­çando a engor­dar a olhos vistos. Nestas cava­quei­ras des­cambávamos fre­quentemente no ultra-es­querdismo, ata­cando como “burguesas” todas as ac­ções de mas­sas de que ha­via notícias e todo o desejo de servir o povo a que chamáva­mos sobran­cei­ra­mente de “obrei­rismo”. Criticávamos a arte po­pular, des­pre­zando os ba­ladeiros e em particu­lar Zeca Afonso, a “Amá­lia Rodrigues dos revi­sas”, e em geral todos os senti­men­tos, quer de amor ao povo quer de ódio à bur­guesia, invo­cando o “anti-es­ponta­neísmo” e o “ca­rácter cien­tí­fico do comu­nismo”, e rotu­lando de “libera­lismo” a evocação de quais­quer as­pectos da vida pessoal de cada um. Este ultra-es­querdismo le­var-me-ia mesmo a criti­car um ro­mance Viet­kong entre­tanto edi­tado, por glo­rificar uma histó­ria de amor entre uma guer­ri­lheira do Sul e um sol­dado do Vi­etname do Norte, o que se me afi­gurava contem­porizar com a no­ção bur­guesa de casa­mento e portanto denotar revisio­nismo, e foi o Fred quem me fez ver que esse amor exprimia simboli­ca­mente a união Norte-Sul no Viet­name e a causa da reuni­fi­cação por que o seu povo lu­tava...
Foi mais ou menos nessa altura, também, que ofereci as minhas co­lec­ções de dis­cos dos Rolling Sto­nes a uma prima da margem Sul do Tejo, dado que via agora aquela música como degenera­da­mente bur­guesa. Toda a música, aliás...
Com esta vida de militante estudantil, estava cada vez mais vai­doso dos meus conhecimentos li­vrescos e da ca­pacidade retórica dos CCR que assi­milara, sem notar que desaparecera em mim o inte­res­se pelos pobres que me tinha le­vado às franjas dos CCRM-L um ano antes. A própria coesão sectária de grupo se es­fu­mava, trans­for­mada em cíni­cos la­ços friamente en­carados, em nome do “anti-libe­ralismo”. Ao mesmo tempo, po­rém, coi­bia-me de pro­cu­rar o amor de alguma rapa­riga, apesar das carências se­xuais que me ator­men­tavam. So­mava as­sim às frustra­ções do asce­tismo a ce­dência aos praze­res da mesa e da con­versa de café, as­seme­lhando-nos de certo modo, eu e o Carlos, a ­clé­ri­gos peca­do­res.
Dez meses depois do meu recrutamento pela Or­ganização eu trans­for­mara-me radi­calmente, do­minado pe­los ví­cios da luta de sei­tas e pela vai­dade dos bas­tido­res estudantis. A de­grada­ção polí­tica em que caíra só se me tornaria no en­tanto cons­ciente quando o pri­meiro ata­que da re­pressão atin­gisse os CCR e estes fos­sem mostrar a sua nu­dez, pe­rante os rigores das salas de tortura.

As prisões de Agosto e Setembro de 1972

No dia seguinte ao da partida para França do João Vieira Lopes e da sua namorada, a 9 de Agosto de 1972, houve uma vaga de prisões da PIDE que levou al­gu­mas deze­nas de antifas­cistas. Entre estes, dois ti­nham sido mem­bros da Di­rec­ção de Vieira Lopes na Associa­ção do “Técnico” em 1970/71, os enge­nhei­ros quí­mi­cos Rui Henri­ques e Fer­nando B..
Rui Henriques vivia com a mulher Margie e o ir­mão ad­vo­gado Du­arte, e ainda um amigo, Miranda. Se­gundo constou, a PIDE ba­teu-lhes à porta de ma­nhã cedo e, como eles a não abris­sem, pro­cu­rando ganhar o tempo sufi­ci­ente para que a Margie destruísse os pan­fletos exis­tentes na casa, a PIDE meteu um pé de cabra à porta e ar­rombou-a. Rui Henriques deu um murro num olho dum agente, um pon­tapé no baixo ventre de ou­tro, e en­quanto os restan­tes o espan­ca­vam bru­tal­mente en­chendo a casa de san­gue, ainda deu um pontapé no pes­coço dum dos agentes. To­dos os residentes foram pre­sos para Ca­xias.
Fernando B. foi preso a meio do banho, em casa, sem re­sis­tên­cia.
A princípio, como eu desconhecia a envergadura dos CCR, a quanti­dade de pri­sões não me impres­sionou muito. Apenas dias depois o Carlos, sem me di­zer por­quê e continuando a levar uma vida quase normal, me avisou de que corria tam­bém o risco de ser preso.
Nos primeiros dias de Setembro, ao entrar na Associação, fui sur­pre­en­dido com um cartaz que anun­ci­ava a pri­são do Carlos. Ao en­trar em casa, onde não dormira essa noite, en­con­trara a irmã se­questrada por vários agen­tes da PIDE que o espe­ravam no interior. Mais tarde a irmã, a Guida, dir-me-ia que entre o exílio e a pri­são ele op­tara por esta úl­tima.
Calculei que eu também entrara em perigo mas só quando, a 15 de Setem­bro, foi preso à saída de casa o Joa­quim Manuel e se in­tensifi­cou nitida­mente a pre­sença da PIDE à minha volta, ob­ser­vando as minhas pos­sí­veis re­acções à pri­são de ami­gos, é que “entrei de pre­venção” pas­sando à semi-clan­desti­ni­dade. Na verdade tal incre­mento da vigilância devia resultar de já ter sido de­nun­ciado pelo Joaquim Manuel, mas isso era coisa que não me pas­sava pela ca­beça…!

O comité "Luta Operária Consciente"

Entretanto, como baptismo do novo comité e de certo modo como res­posta às pri­sões com que a PIDE estava a fe­rir os CCRM-L, em fins de Agosto pro­ce­demos a um espalha­mento de pan­fletos na Venda Nova. E, de ma­drugada, com o céu de Agosto limpo e já dia às 6 ho­ras da ma­nhã, antes da hora de en­trada dos trabalha­do­res es­palhá­mos cem tarjetas em dois locais-chave de pas­sa­gem obrigató­ria de quem fosse para as fá­bri­cas: na esta­ção de com­boios da Damaia e numa paragem de autocarros na estrada de Ben­fica. En­quanto um de nós vi­giava os acessos do lo­cal, pre­ve­nindo qualquer aproxi­mação da PIDE ou da PSP, o outro fazia o espa­lha­mento. Só fui eu e o Rui por­que cons­tatá­ra­mos, num en­saio, que o irmos os três difi­cul­tava mais a opera­ção do que indo só dois, pois a coor­de­nação era difícil.
A tarjeta, mais uma vez, era a única de que possuíamos um sto­que: a que con­tinha um comunicado do PAIGC na frente e ou­tro dos CCR no verso, ape­lando à de­ser­ção e à solidariedade com os po­vos africa­nos em luta con­tra o colo­nia­lismo.
O centro recreativo Rangel era um local de convívio operário onde ge­ral­mente não se fazia mais do que pas­sar o tempo no jogo: cartas, dominó, etc. Havia uma velha biblioteca semi-abandonada que o Rui pôs em or­dem, e de­pressa decidimos organi­zar a pu­blicação de um boletim cultural, com vista à aglu­ti­nação dos operá­rios mais in­teres­sados cultural­mente e sensíveis a essa “dina­miza­ção”. A impres­são do boletim foi feita, sob emprés­timo, num co­piógrafo da empresa Ico­sal. Edita­ram-se dois nú­me­ros do boletim, tendo um deles in­cluído um ar­tigo in­for­mativo sobre a guerra do Viet­name e a sua história, que compus com base em livros e dados de memó­ria, tirando no fi­nal a con­clu­são da in­ven­cibilidade da guerra verda­dei­ramente po­pular. Isto valeu ao Rui o con­se­lho da Di­recção do cen­tro para abandonar a “polí­tica” naquelas tarefas, pois era-lhes evi­dente que o Rui fora te­le­guiado naquela edi­ção. Por outro lado, esta “politi­zação” cul­tu­ral não só não atraiu quais­quer no­vos operá­rios, como chamou antes a aten­ção de notó­rios bu­fos e le­gionários que pas­saram a con­centrar a sua atenção no Rui. O único efeito po­sitivo deste tra­balho foi o co­nheci­mento de no­vos ope­rários tra­balhando na Venda Nova, que lhe arran­jaram emprego numa fá­brica de vidros da zona, a So­tancro. E assim, em Outu­bro, o Rui obti­vera fi­nal­mente a de­se­jada coloca­ção na Venda Nova. Quanto ao Fi­lipe, que inicial­mente tí­nhamos pensado também poder desenvolver um tra­ba­lho útil no Rangel, filiou-se lá como só­cio mas acabou por nunca o chegar a fre­quentar, dado o ca­minho que as coi­sas leva­ram quando se nos tornou evidente que o Centro era controlado pelo re­gime.

O desânimo por todos os fracassos

A primeira constatação que lamentavelmente tinha de fazer é que a Orga­ni­za­ção não funcionava, de facto.
Em quinze meses de militância recebera um único relatório de con­trolo, mas nem mesmo nesse houvera qual­quer orientação para os problemas práti­cos que nos iam surgindo. O meu relató­rio do Natal de 1971 ti­nha fi­cado sem qualquer res­posta meses a fio, sem a mínima orien­tação prática. O pro­blema do papel a atri­buir à nossa interven­ção es­tudantil e outros pro­blemas orga­ni­zativos, eram to­tal­mente ig­norados. O “Viva o Comu­nismo!” n.º 6, cuja im­pressão não fora atri­buída ao nosso Comité, ainda não sur­gira em pú­blico ape­sar dos lon­gos meses decorri­dos desde a sua re­dacção (lera o origi­nal em Abril e já está­vamos em Dezembro). Nenhuma imprensa de agita­ção era editada pela Organização, continuáva­mos a dispor apenas da velha e sem­pre a mesma tar­jeta anti-colo­nial, e entretanto todas as outras or­ga­niza­ções se expan­diam, cau­sando-me a sen­sação de que todas iam ultra­passando os CCRM-L a que eu aderira em 1971, os CCRM-L pi­oneiros da cons­tru­ção do Par­tido pela saída da Uni­versidade e pela li­ga­ção ao ope­rariado.
Ainda no Comité “Luta Popular”, viera-se-me acentuando o des­gosto e a an­si­e­dade para com o abandono a que sentia vo­tado o meu tra­balho ope­rário e a acção política do Comité, des­gosto e an­sie­dade que Vieira Lo­pes co­nhe­cia perfeita­mente e de cuja ex­pres­são, em forma de crítica ver­bal, era por­tador quando partiu para França, em Agosto de 1972. A nossa suspeita, co­mum a todos os mem­bros do Co­mité, era que a Direcção se dei­xava mer­gulhar no estudo livresco e igno­rava com­ple­ta­mente o tra­balho prático dos mi­litan­tes no inte­rior, em par­ti­cular deslei­xando o estabeleci­mento de um sis­tema de correios que permi­tisse uma orientação mais efectiva e a troca de infor­ma­ções. Ao mesmo tempo, o ar­tigo sobre a guerra do Viet­name no “Viva o Comunismo!” n.º 5, e as elu­cu­bra­ções so­bre a “pe­quena bur­gue­sia dos servi­ços” no “Viva o Co­mu­nismo!” n.º 6, davam-nos a im­pres­são de que a Direc­ção an­dava muito dis­traída da vida. A existência de di­rec­tivas, ori­enta­ções e esclareci­men­tos con­cretos, era assim algo que eu es­pe­rava com imensa an­si­edade, mesmo já na altura em que o João se vira obri­gado ao exí­lio, antes das prisões do Verão.
Porém, mesmo agora que estava sem contactos com os militan­tes que tinham sido meus mentores, continu­ava a não merecer qual­quer cor­reio, qualquer contacto, qualquer directriz! E não era de certeza ape­nas por meras difi­culda­des técnicas, porque o con­teúdo do relatório de controlo de Se­tembro, apesar de ser o único rece­bido até agora, comprovava bem a desatenção que me­recía­mos à Direc­ção!...
A Organização não funcionava, portanto, como organiza­ção. Publi­ca­mente não tinha activi­dade: não dirigia, não desenca­de­ava, não parti­ci­pava em ac­ções de massas. No meio estu­dantil, onde nas­cera e ti­vera uma projec­ção do­mi­nante nos anos lec­ti­vos de 1970 e 1971, es­tava redu­zida a ele­men­tos dis­per­sos e iso­lados, quase desli­gados da luta de mas­sas, per­seguidos pela re­pres­são, ul­tra­pas­sados pelas ou­tras forças de es­querda cada vez mais pu­jantes. O conspirati­vismo que arvo­rara como justificação para a sua estraté­gia de cons­tru­ção do Partido, evi­tando a expo­sição de diri­gentes no interior antes da exis­tência do “aparelho téc­nico”, provava-se afinal como sofrendo da maior das vul­nerabili­dades face à PIDE, ates­tando o fra­casso da linha fe­chada e de iso­lamento das massas que jul­gava ser a melhor forma de se pro­teger.

A contestação à direcção da organização

Dois novos factos vieram entretanto reforçar o descrédito polí­tico da Di­rec­ção perante os nossos Comités: os comunicados publicados pe­los CCRM-L sobre o as­sassí­nio de Amíl­car Cabral e sobre as prisões de Agosto-Se­tem­bro de 72. Amílcar Cabral foi assas­sinado em Co­na­kry em Janeiro, e o jul­ga­mento em Tri­bunal Ple­ná­rio dos ex-camara­das presos foi realizado em Feve­reiro, o que co­in­cidiu mais ou me­nos com o apa­recimento público dos refe­ridos textos.
Desta vez a imprensa dos CCR não nos chegou às mãos pelas vias inter­nas da Organização, mas sim pela sua apanha em locais públi­cos, como era cos­tume re­la­tiva­mente às outras organizações. Era a primeira vez que ví­amos algum vestígio público da Organiza­ção e, se isso nos alegrava por vermos que ela continuava a existir, por outro lado mais nos reforçava a incompre­ensão do motivo por que não re­cebíamos nenhum con­tacto.
O comuni­cado so­bre o assas­sinato de Amílcar Cabral, intitulado “Vinga­re­mos Amílcar Cabral!”, era um longo des­file da teoria abs­tracta e especula­tiva que caracte­ri­zava o “Viva o Comu­nismo!”, acerca dos diver­sos sectores da burgue­sia e camadas da pequena burgue­sia e ou­tras classes não-proletá­rias e dos seus interes­ses sobre o colo­nia­lismo. Encon­trado pelo Rui junto às fábri­cas da Venda Nova–Amadora, o co­muni­cado en­tristeceu-nos muito pela perseve­rança que constatá­mos na Di­recção da Organiza­ção em pros­se­guir o seu estilo com­pleta­mente ina­cessível aos trabalhado­res. Além disso e quanto aos factos concretos, observava-se ir­res­ponsabili­dade e preci­pita­ção no julgamento feito: Amílcar Ca­bral fora, apa­rente­mente, as­sas­sinado por ca­maradas do PAIGC, tal­vez prenun­ciando as cli­va­gens étni­cas e tribalistas que viriam mais tarde a des­truir o movi­mento. Mas a Di­recção dos CCRM-L as­su­mia que tinha sido morto pela PIDE, sem apresentar qual­quer prova!
O segundo comunicado, que encontrei na casa de banho da As­so­cia­ção de Es­tu­dan­tes do “Téc­nico”, era so­bre as pri­sões de Agosto e Se­tembro de 72 e, de­pois de fazer também um longo arra­zoado teó­rico sobre um pretenso re­fluxo do movi­mento operário portu­guês (quando é que tinha sido o fluxo?), ex­pul­sava da Orga­nização o Fer­nando B. e o Rui Henriques, de­cla­rava que o Jo­a­quim Manuel “nunca ti­nha per­tencido, não perten­cia nem nunca per­ten­ce­ria” aos CCRM-L, e prometia “medi­das es­pe­ciais” para o Carlos António pelo seu com­por­ta­mento de trai­ção. A le­vian­dade com que eram trata­dos estes cama­radas, em rela­ção aos quais se apelava a “todos os revo­lucio­ná­rios” para os afastarem do seu con­vívio pessoal, era-me fla­grante na enu­mera­ção das tor­turas a que haviam sido sujei­tos: o co­muni­cado atri­buía-lhes as sevícias que eu próprio noticiara para Paris na al­tura, mas que eu ainda não tinha con­firmado e que viria a constatar terem sido exa­gera­das. Por­tanto, se a Di­rec­ção era tão le­vi­ana a pu­blicar os meus rela­tos não confirmados acerca das tortu­ras dos pre­sos, po­dia eu avaliar a ausên­cia de senso de responsabi­li­da­des com que os exco­mun­gava do movi­mento antifascista!…

Em desespero de causa

O João Pedro alugara, com a namorada, uma casa no Algueirão, sem água, sem luz, sem mo­bília, onde tinha reu­ni­ões semi-legais de ca­rácter asso­cia­tivo com um grupo de estu­dan­tes do liceu de Sin­tra, ac­tivistas políti­cos onde a sua irmã Cris­tina era a figura proemi­nente. Ora o João Pedro pôs-me a casa à dispo­sição e por isso pedi-lhe uma chave, passando a ter aí reu­ni­ões com o Rui e o Fi­lipe mas sem que nunca nin­guém os visse, encon­trando-me eu a sós com o João Pe­dro e por vezes com a sua namo­rada, que ele pa­recia trazer ao cor­rente de to­das as suas activida­des e compro­meti­mentos. Essa casa dava-nos, por fim, um aloja­mento temporá­rio para o copiógrafo que tanto ambi­cio­náva­mos.
Acontece que em tempos, numa velha arrecadação da Associa­ção de Estu­dan­tes do “Técnico”, ha­viam sido en­contrados dois velhos copi­adores ma­nuais que, de velhos que es­tavam, care­ciam de pe­ças, ti­nham outras avari­a­das, e tudo ferru­gento. O Carlos António lo­grara apoderar-se de um, mas nunca con­seguira con­sertá-lo e aca­bara por re­correr ao roubo de uma má­quina eléc­trica da Associa­ção na Páscoa de 72, tendo no en­tanto aca­bado por ficar com o velho e ava­ri­ado co­piador ma­nual em seu poder.
Em Janeiro, depois de obtida a utili­zação da casa do Algueirão, pedi então à irmã do Carlos Antó­nio, a Guida, que in­tro­duzisse na Ca­deia de Ca­xias um bilhetinho a pe­dir ao ir­mão que me fizesse entre­gar o co­pi­a­dor. Como em Caxias havia vi­dros a separar os presos dos visi­tantes e o contacto físico era impos­sível, e os guar­das e pos­síveis mi­cro­fones de vigilân­cia impediam con­ver­sas sobre questões cons­pi­rati­vas, havia que aproveitar as vi­si­tas es­peciais em salas co­muns que o regu­la­mento prisional concedia em da­tas festivas como aniversá­rios, Natal e Ano Novo, e iludir a vigi­lân­cia dos guar­das. A Guida as­sim fez, e trouxe indicações para que o guar­dião do co­pi­a­dor, o Gil Braga, um engenheiro nosso simpati­zante, o trans­por­tasse no seu au­to­móvel para casa da irmã mais ve­lha do Carlos, na Pa­rede, numa caixa de car­tão que es­condia o seu con­te­údo.
Pedi depois a um dos estudantes do “Técnico” que a minha militân­cia apro­ximara dos CCRM-L e com quem pas­sara a ter uma li­gação política semi-le­gal, o Saraiva, para vir co­migo no seu carro fa­zer o transporte do pe­sado cai­xote da Parede para o Algueirão e, como o Saraiva era um acti­vista dis­creto e res­ponsá­vel, pres­tou-se à ajuda sem fazer per­gun­tas. Fi­nalmente, na casa do Al­gueirão, o caixote foi alo­jado sem eu dar contas do seu con­teúdo ao João Pedro.
O Rui, e especialmente o Filipe, que era mais habilidoso e que dada a sua for­çada inactivi­dade es­tava dese­joso de ser útil, pu­se­ram em ac­ção as suas quali­dades ma­nuais de operários e, con­ser­tando peças, fazendo cons­truir ou­tras, lá foram arran­jando o copiógrafo nos fins de semana, coisa que ocu­pou os me­ses de Feve­reiro e Março. Pro­va­velmente teriam che­gado a impri­mir-se boas coi­sas neste apa­relho tão ca­rinhosamente tratado se os aconteci­mentos posterio­res não tives­sem im­pe­dido que che­gasse a ser utili­zado…!

Os ultimos contactos

O pacote trazia três circulares sem grande importân­cia; porém, a Di­rec­ção re­sol­vera iniciar a edi­ção de um jor­nal interno que substi­tuísse as cir­cula­res, permi­tindo a expansão da discussão in­terna. O “Van­guarda Comu­nista”, as­sim se cha­mava esse bole­tim, continha um ba­lanço da ac­tivi­dade da Orga­ni­za­ção em 1971 e 1972 e, apesar de não mencionar nomes, confir­mava, afi­nal, a sus­peita em que eu vivia de que re­al­mente a Organi­zação se restrin­gia pouco mais ou menos ao que eu podia ver dela e que, por­tanto, a crise pro­funda evi­dente no que me era vi­sível era a crise da pró­pria Organização.
Depois vinham os relatórios de controlo: o meu, com o título “De Mi­guel para Vicente”, vinha se­parado do dos outros dois camara­das, embora uma parte inicial fosse comum, já que tra­tava da acti­vi­dade pro­pria­mente do Comité. “Mi­guel” alterava-me o pseudó­nimo de “Vicente” para “Ro­sário”, dado o anterior ter sido denun­ciado pelo Carlos e, de seguida, acu­sava-me de co­mi­teísmo e subjecti­vismo nas críticas ira­das que o meu Comité fi­zera em Se­tem­bro e Dezem­bro de 1972, exi­gindo-me a redacção de uma auto­crí­tica. O relató­rio enviado em Março, em que eu tomara a ini­cia­tiva de aban­donar o pseu­dó­nimo de “Vicente” re­tomando provi­soria­mente o de “Aní­bal”, bem como o documento “Na via revolucioná­ria”, feito a meias com o Co­mité do João Pe­dro e en­vi­ado em Feve­reiro, ainda não eram men­cio­na­dos. Talvez a letra miúda com que haviam sido manus­critos desse dema­si­ado trabalho a ler a quem tinha tantos afazeres...
Na parte do relatório que era destinada a todo o Comité éramos de­sancados pelo con­teúdo da tar­jeta “A União faz a força” que fizéra­mos para a Venda Nova, acu­sando-nos de falta de referências con­cretas a pro­blemas lo­cais, o que nos criou a maior das confusões: mas então, afinal, pretendia-se que se mencio­nasse proble­mas con­cretos para fazer o quê com eles, se não nos era permitida depois a di­rec­ção de lutas colecti­vas, se não podíamos apontar vias de acção e di­rigi-las? E nada era dito quanto à ca­rência de meios téc­ni­cos para a im­pres­são destes pan­fletos...!
De seguida, “Miguel” esclarecia-me que se, no relatório de controlo ante­rior, des­vendara a quali­dade de mi­li­tante de Vieira Lopes aos meus cama­radas operários, isso fora por razões que não me compe­tia questio­nar... e criticava-me furio­sa­mente por ter to­mado em ombros o trabalho estu­dan­til “her­dado” do Carlos, es­ca­mo­teando ­sem uma palavra a sua própria res­pon­sabilidade nisso, ao ter-me dei­xado aban­donado tan­tos me­ses nas cir­cuns­tân­cias de isola­mento em que ficara, sem qual­quer orien­tação fosse em que sen­tido fosse!
E, estranhamente, “Miguel” parecia ignorar não só o trabalho que eu já ha­via feito na Univer­si­dade an­tes das prisões de 72, como a ideia exis­tente no Co­mité “Luta Popu­lar” de que eu era o futuro represen­tante da linha dos CCRM-L no “Técnico”, ideia que vi­nha da própria Direcção, do “Júlio”, cuja respon­sabilidade pelo sec­tor estudantil ti­nha sido rati­ficada pelo próprio “Miguel” mas de que, aparente­mente, este não parecia estar recor­dado! Nem informado de que essa repre­sentação me fora transferida pelo Carlos Antó­nio desde a Pás­coa!...

A prisão pela PIDE e a espera + A violentação

Eram dezoito horas do dia 30 de Abril de 1973 quando rodei a chave da porta de casa e de­parei com o meu ir­mão, a mi­nha mãe, a mi­nha avó e… seis agen­tes da PIDE! Ou, mais exacta­mente, quatro agentes. Os outros dois esta­vam nas imedia­ções ex­teriores da casa e en­tra­ram logo a seguir a mim, cor­tando-me a re­tirada. Um deles saíra do pré­dio, dobrara a es­quina e fora para as trasei­ras quando eu me aproxi­mava ao longe, visando blo­quear-me a fuga se a viesse a ten­tar. A casa tem uma pra­ceta de­fronte que lhe dá boa visibili­dade, mas só per­cebi que era um polí­cia tarde demais­.
Por entre a nebulosidade que me envolveu o raciocínio e os senti­dos, con­se­gui pensar: “Chegou a mi­nha vez!”. O terror invadiu-me; ins­tantanea­mente aper­cebi-me da gravidade dos documentos que trans­portava comigo e do grau destrutivo da­quela pri­são. Apode­rou-se de mim a neces­si­dade de uri­nar e fi­quei com a boca seca, sem ouvir nem ver, a mexer-me como um au­tómato.
Tinham já revistado a casa e apreendido diversos panfletos e al­guns papéis com apontamentos so­bre a mi­nha actividade polí­tica. No ca­minho para casa vinha pre­cisamente a pensar na ne­cessidade de a limpar, pois já há sema­nas que andava com um pressenti­mento…
Na carteira que trazia no bolso havia outros apontamentos que, em con­junto, con­tinham as ini­ci­ais dos no­mes de todos os indiví­duos politica­mente li­ga­dos a mim. Uma das notas manuscri­tas tra­tava de coisas do Comité e do João Pe­dro, outra con­tinha grandes orga­nigra­mas partidá­rios que re­sul­ta­vam de deva­neios meus so­bre o fu­turo da Or­ganização, e havia até dois re­latórios redigidos com as próprias ca­ligra­fias do Rui e do Filipe, in­titu­la­dos “traba­lho de implanta­ção operá­ria Dez-Mar”­...!
Mas o mais grave era a pasta que eu transportava. Continha o grosso enve­lope recebido da Di­rec­ção da Or­gani­zação quatro dias antes, com algumas circula­res in­ternas, dois nú­meros do jor­nal interno “Van­guarda Co­mu­nista”, o volu­moso relatório de controlo “De Mi­guel para Vi­cente” e o longo texto “Na via re­volucio­nária” assi­nado pelo meu Comité e pelo do João Pedro.
Os agentes dactilografaram uma amostra do alfabeto das máquinas de escre­ver exis­tentes em casa e um auto de apreensão. Re­cusei assi­ná-lo, e os agen­tes mostra­ram-me então um mandato de captura. O choque em que es­tava só me per­mitiu reter o final: “… nos ter­mos dum processo que corre contra ele nesta Di­rec­ção-Ge­ral”. Asso­ciei logo isto às de­nún­cias do Joaquim Manuel con­tra mim meses antes.
No meio da névoa provocada pelo terror consegui desfazer-me de um mo­lho de cha­ves que meti à socapa no forro de um sofá num momento de dis­tracção dos agentes, e dum papelinho com uma mo­rada que engoli, o que me custou bas­tante devido à se­cura da boca. As chaves eram da casa clan­destina no Alguei­rão e a mo­rada era a da Ana Pais, que eu en­vi­ara para Pa­ris e onde de­ve­ria receber o postal de um dirigente com a data do encontro que finalmente a Direcção me conce­dera.

... A violentação...
Pegaram na mesa e levaram-na para um canto da sala, enquanto o Celso di­zia:
- Senhor Sá, acabou-se a brincadeira!
Empurraram-me para junto da mesa e o Celso desatou a esbofetear-me vi­o­lenta­mente, en­quanto ia ininter­rup­tamente fa­lando. Segundo ele, do que eu gostava era de beber cerveja na cervejaria Por­tu­gá­lia e de não fazer nenhum, andava eu a estragar o meu curso en­quanto os meus pais me sus­ten­ta­vam e os meus chefes estavam regalados em Paris sem exporem a pele, andava a atrai­çoar os meus pais, que, como todos os ve­lhos, sabiam muito, que não ti­nha pinta de político, por­que é que me metia nisso, que o que eu queria era ganhar dinheiro e ter um carro, etc … e ia-me esbo­fe­te­ando violenta e rapi­damente en­quanto falava.
Depois começou a mostrar-se irritado por eu parecer mudo e man­dou-me pôr a mão direita espal­mada sobre a mesa e, en­quanto me seguravam, acen­deu su­cessi­vamente três fósforos e queimou-me as costas da mão com eles, apa­gando-os na minha pele.
Eu estava completamente aterrado, com o cérebro bloqueado e in­ca­paz de rea­gir criticamente ao que ele di­zia, incapaz de pen­sar e de os agredir ou de me defen­der.
Os dois então empurraram-me para junto duma parede e, nessa al­tura, en­trou o agente Magalhães da Silva que me desatou a in­sul­tar, a dizer que eu “assim, nem a Organização estava a de­fen­der”, fa­lando muito ra­pida­mente sem eu conseguir pensar, e di­zendo a rir sarcasti­camente:
- Sabe o que é a estátua? É o que vai fazer! Torturas?… Tortu­ras fa­zem-nas os rus­sos e os chine­ses… mas muito mais re­quinta­das!…
E dava-me grandes “caldos” no pescoço. Então o agente Celso man­dou-me pôr em sentido e a olhar para um ponto fixo na pa­rede. E dava-me ponta­pés nos tornoze­los “para eu os juntar”, di­zia, e pu­xava-me pelas ore­lhas dizendo “Para ali!”, apontando para o ponto da parede que eu devia fi­xar.
O agente Magalhães mandou-me então despir a camisola de malha, e a se­guir o agente Celso mandou-me vesti-la. Quando a vesti de novo, o Maga­l­hães deu-me uma grande pancada na nuca e gritou que ma tinha man­dado despir. Esti­veram nisto um bom bocado e riam-se; quando des­pia a ca­mi­sola, era o Celso que me batia com grandes bo­fetadas ou murros na testa, e quando a vestia era o Maga­lhães que me batia, com pan­cadas na nuca que quase me ati­ravam ao chão. Um man­dava vestir e ba­tia à frente, o outro man­dava despir e batia por trás.
A certa altura deixei de despir a camisola e fi­quei quieto, com­pleta­mente ator­doado e quase a cho­rar. Não tinha do­res, nem mesmo das queimadu­ras dos fós­fo­ros. O efeito da pancada, com o ator­doamento que trazia do sono, era so­bretudo psi­cológico, cri­ando-me submissão ao que me iam di­zendo.
O Celso então disse-me:
- Quer pensar? Quer reconsiderar? Quantos dias quer? Um, dois, uma se­mana, duas? Duas sema­nas, pronto! Já mandá­mos cortar a sua visita da próxima semana, de modo que vai ter duas se­manas para pensar! E agora fica aqui em estátua e vá pensando! E está com sorte por­que quando aqui en­trá­mos éra­mos para lhe dar uma sova que o deixasse aí esti­cado ao canto… para passar o res­to da noite bem acor­dado!…
E então saíram da sala, deixando a guardar-me um quarto agente que entre­tanto entrara.
Ali assim em sentido a olhar para a parede, algumas horas de­pois já não con­seguia manter-me quieto. Co­mecei a apoiar-me primeiro numa perna, depois na outra. O agente que me guardava começou a ameaçar-me de cha­mar os co­legas.

A conquista das almas

E assim, naqueles dias 23, 24 e 25 de Maio, a PIDE, a minha terra ­na­tal e os meus pais, sur­giam-me fundidos num todo. Ofe­re­ciam-me amor em troca do retorno à casa paterna que eu re­ne­gara três anos antes. Perdoa­vam-me ter-me oposto aos meus pais, aos amigos de in­fância, a todos os que me ama­vam e de quem, sur­pre­endente­mente, eu afinal sentia tanta culpa por ter comba­tido. Perdoa­vam-me desde que me arrependesse, claro!
A pessoa que centralizava perante mim todo este processo era o Chefe de Bri­gada Inácio Afonso. Além do mais, ele era a pessoa de idade que com­pre­endia estes meus erros juvenis, um ho­mem cheio de humanidade, com­pre­ensivo… E claro, fazia-me ver como os CCRM-L eram os res­ponsá­veis pelo meu descami­nho!
Havia no entanto outro aspecto na mentalização: todos os agentes me acon­se­lha­vam a colaborar, a cooperar com o chefe, que ele era leal e com­preen­sivo; mas também me falavam da importância que isso teria para o meu jul­ga­mento, se eu fosse a julgamento, e da tropa discipli­nar e do desem­prego que me espera­riam se não cola­bo­rasse. À ami­zade não deixa­vam de juntar a men­ção ao preço de não corresponder.
Estas alusões não me assustavam pelas suas consequências práti­cas. Que­ria lá saber do emprego público ou das condições da tropa, ou até de estar ou não metido anos numa cela! Eram coisas que não tinham nenhum signi­fi­cado, para mim que resolvera tudo sacrificar meses antes à causa, sa­bendo que me espe­rava na me­lhor hipótese um exílio de que não fazia a menor ideia como se­ria, nem de como lá chegaria, mas que de qualquer modo seria sempre o fim de qual­quer car­reira pes­soal, o que nada me impor­tava.
O que me assustava naquelas alusões era a possibilidade de ser de novo aban­do­nado por todo este mundo de afectos que me con­quis­tara, depois de ter cortado para sempre com o outro para quem pas­sara a ser um ini­migo!
De modo que, no dia 25 à noite, quando regressei à minha cela no Reduto Norte, vinha profunda­mente como­vido com a humani­dade da PIDE, ar­re­pen­dido de me ter afastado dos valores familia­res e cheio de sau­da­des de Angola. E furioso com os CCRM-L por me te­rem desen­caminhado!…
Tornara-me um “ar­rependido”. Genuína e desinteressada­mente…
Esta adesão ideológica não deixou de se desenvolver durante os dois meses seguintes de isola­mento celular, só quebrado pelos in­terroga­tórios.
Nos quinze dias imediatos não me voltaram a chamar. A angústia, o dese­qui­líbrio nervoso e a so­lidão da cela leva­ram-me a afogar na co­mida a tor­tura do isola­mento: engordei dez quilos neste período! Na nova vida que agora en­ce­tava, de recon­ci­li­ação com o bom caminho, como agora o via, pedi autoriza­ção para ter livros de es­tudo de enge­nharia, que me foi ime­diata­mente conce­dida. Escrevi para casa a pe­dir os livros e, na visita se­guinte (29 de Maio), já os tinha. A minha mãe, coitada, fazia tudo o que lhe pa­recia ne­cessário para me ajudar naquele momento, e dedicar-me ao estudo era o que ela achava que eu já devia ter feito há muito tempo!
Este alívio na privação sensorial que os livros de estudo consti­tu­íam rece­bi-o tão sofregamente que nunca como até então mergulhei com tanta intensi­dade nas deduções ló­gi­cas da Matemática. Con­geminei imensos pla­nos de estudo para o meu retorno à engenharia e às dis­ciplinas que tinha de fazer, e sentia-me feliz por com isso imagi­nar que voltava a ganhar a ami­zade e o apoio pa­ternos. O estudo entu­si­asmava-me extraordi­naria­mente sobre­tudo por ter al­guma coisa a que me dedi­car, que me ocupasse e desse sentido à vida!
Aí por volta do dia 6 de Junho voltei ao Reduto Sul, para esclare­cer peque­nas dúvidas que tinham subsis­tido. Na altura forneci um ma­nuscrito con­tendo uma opinião sobre o António Manuel, que era já uma informa­ção à mar­gem do meu pro­cesso e que redigira na cela, onde dispunha desde o iní­cio de papel e vá­rias esferográ­ficas de dife­rentes cores. Esta es­crita das in­formações para a PIDE era a forma como a PIDE quisera, desde o primeiro momento, que eu contasse o que sabia: por es­crito. Sem distin­ção entre o que me di­zia ou não me dizia res­peito, do ponto de vista do Processo judi­cial, processo que para mim não tinha qualquer significado jurídico. Escre­via es­sas coi­sas essencial­mente na espe­rança de que as­sim, depois, Iná­cio Afonso quisesse conversar comigo e me manti­vesse a es­tima que tinha de­mons­trado, e que era o que eu mais desejava, na longa soli­dão da cela e sa­bendo-me totalmente proscrito pelo mundo onde vivera nos últi­mos três anos...

Os demónios ideológicos

Em princípios de Fevereiro, porém, e a poucos dias da data mar­cada para o jul­gamento, o João Pe­dro foi le­vado de novo para o isola­mento e daí para inter­rogató­rios. Desconhe­cia-se o motivo, mas como aquilo era ilegal, uma vez que ele já estava supostamente entregue ao Mi­nistério da Justiça, todas as celas se barri­caram ime­diata­mente e come­çou-se a gritar pelas jane­las, avi­sando as famí­lias que passavam no exterior da Cadeia. Esta reac­ção pare­ceu dar resul­tado por­que a PIDE desis­tiu do João Pedro. A luta prosseguiu pela ausên­cia de re­presálias e aca­bou com a vitó­ria, ao fim de uma semana. As bar­rica­das incluíam, evi­den­te­mente, a greve da fome…
As represálias fo­ram ligeiras e já cum­pridas: sus­pensão de visitas, etc. Da ex­pe­riência de uma se­mana sem co­mer recordo sobretudo o tre­mendo desar­ranjo intestinal que tive quando depois me alimen­tei pela pri­meira vez, ape­sar de avi­sado e de ter comido parcimo­niosa­mente…
Mais tarde soube-se que o motivo dos novos interrogatórios ao João Pedro ti­nha sido um re­lató­rio por ele envi­ado da Cadeia para os CCRM-L e que fora encon­trado na posse do António Manuel, preso em Dezem­bro, pouco an­tes do Natal.

Com efeito, a 19 de Dezembro, nove dias depois de ter conseguido escapar à PIDE quando esta o tentara pren­der em casa, o António Manuel foi preso pela GNR em Fonta­nelas, por suspeita de la­droa­gem, numa cena especta­cu­lar contada nos jor­nais da época. Nessa pequena aldeia, perto de Sintra, onde pos­suía uma casa clan­des­tina, o António assumira um com­porta­mento furtivo que des­per­tara as sus­peitas da popu­la­ção que o de­nun­ciou à GNR. Este caso, bem como o da casa na Abru­nheira do João Pedro, mos­tram como a apa­rente lon­jura das ca­sas de campo relativa­mente às aten­ções da PIDE, as­sim como a prescisão de es­crituras para ar­ren­da­mento, eram in­feliz­mente com­pensadas pelo con­trolo que os caci­ques locais exer­ciam so­bre o quotidi­ano das suas al­deias e pela im­possibilidade de a­no­ni­mato em meios fe­cha­dos como os ru­rais. Não a PIDE, mas sim os próprios adeptos locais do re­gime se encar­rega­vam, com a GNR, de vigiar, des­co­brir e de­nunciar as sub­ver­sivas activi­dades desen­volvidas em tais ca­sas.
Uma vez sob a mira dessa gente e sen­tindo-se vigiado, prepa­rava-se o Antó­nio Manuel para fugir es­perando pela camio­neta da carreira numa pa­ragem pró­xima, quando alguns guardas da GNR se apro­xi­maram dele. A camio­neta chegou na mesma altura que a GNR e o António entrou, mas um guarda repu­blicano seguiu atrás dele e o António correu para a porta da frente da ca­mi­o­neta, onde já outro soldado lhe bar­rava a passa­gem. O Antó­nio aí puxou de uma pistola e deu um tiro nesse militar, mas foi do­mi­nado pelos re­s­tantes.
A seguir os guardas foram com ele à casa suspeita e aí é que desco­bri­ram do que se tra­tava, entre­gando-o à PIDE depois de o sovarem por ele ter resis­tido à prisão daquela maneira.
Em Caxias o António Manuel, que passara a usar o pseudónimo de “Edu­ardo”, foi certamente torturado mas confessou as suas acti­vida­des, e consta mesmo ter feito um acordo, negociando a li­berta­ção da mulher entre­tanto presa em Sin­tra e arcando com a res­ponsabilidade das acti­vida­des dela. Era um tipo de negócio que a PIDE fazia muito e disse-se então que o António Manuel teria ten­tado depois sui­cidar-se cortando as veias dos pulsos com os pró­prios dentes. Quanto às suas decla­ra­ções, viria a co­n­he­cê-las apenas déca­das de­pois…

O julgamento e a revolução

O julgamento prosseguiu na quinta-feira seguinte, dia 21. Falaram os advo­ga­dos, que pediram a absolvição dos seus constituintes no caso do Rui e do Filipe, ou que fizeram ver o valor do réu no caso do João Pedro, e o meu, que pediu a atenção do tribunal para a minha von­tade de ser “reinte­grado na so­cie­dade”. Fi­nal­mente à tarde os juízes leram a sentença. Todos os quesitos foram con­siderados pro­va­dos e nós dados como culpa­dos.
Eu fui conde­nado a 22 meses de prisão correccional sus­pensa por cinco anos, quase no limite do que era sus­pendível, privação de di­reitos políticos igual­mente por cinco anos, e ao pa­gamento de um im­posto de justiça e das custas judici­ais (cerca de 800 eu­ros de 2006). Fo­ram expressamente consi­deradas como atenuantes a co­la­bo­ra­ção prestada na ins­trução do processo e a von­tade mani­festada de “reinte­gração na sociedade”, coisa que o jornal “Repú­blica” noti­ciou com todas as le­tras.
O Rui e o Filipe foram con­denados a 18 meses de prisão correccio­nal sus­pen­sa por três anos, priva­ção de direi­tos políticos por cinco anos e ao paga­mento de custas e multa no valor de 480 euros actuais. Como ate­nuante foi-lhes con­side­rada a condi­ção económica e, relativamente à ab­sol­vição pedida pelos respecti­vos advogados, os juízes observa­ram que os réus não ti­nham con­testado os volumo­sos autos de decla­rações prestadas na instru­ção do pro­cesso e que, portanto, os factos eram dados como prova­dos.
Finalmente o João Pedro foi condenado a dois anos e meio de prisão maior, como pretendia, e à perda de di­rei­tos po­líti­cos por quinze anos; como agra­vante foi-lhe con­siderado o seu comporta­mento no Tri­bunal.
Tudo isto constou do corpo do processo, o processo-crime contra a segu­rança do Es­tado n.º 76/A – 73 arqui­vado no 1º Juízo Criminal do Tribunal da Boa Hora.
E assim saímos do Tri­bu­nal em liberdade eu, o Rui e o Filipe. Sofrera eu dez meses de prisão ce­lu­lar e eles oito me­ses e meio.

Saí da Cadeia completamente arrasado do sistema nervoso. Não con­seguia fa­lar mais de meia hora sem ter de me deitar, por causa das náuseas que me in­vadiam. Não conseguia ler, nem con­ver­sar, nem ver TV, e quando tentei ver cinema pela primeira vez quase enlou­queci. Também é verdade que o filme que fui ver era “A Más­cara”, de Ingmar Bergman...
Tinha crises de terrível ansie­dade seguidas de quebras de fadiga tais que quase não con­seguia ar­rastar as per­nas. Aliás, durante quinze dias elas doe­ram-me, devido à perda do há­bito de an­dar no regime de prisão ce­lu­lar em que vi­vera. A única coisa que me aguentava eram os anseolíticos que eu pou­para na Cadeia e que trouxera, conti­nu­ando a tomá-los.
Estava completamente confuso das ideias. Aliás, estava extrema­mente su­gesti­oná­vel a quaisquer ideias! Não sabia se devia es­tu­dar, e nesse caso que curso seguir. Horrorizava-me a perspec­tiva do ser­viço militar por me pare­cer impos­sível suportar a sua disci­plina, eu que nem uma simples con­versa conseguia aguentar!
Quanto a doutrinas e demais construções ideológicas, estava pos­su­ído de uma in­descritível re­pugnância por quaisquer deduções lógicas e só queria era con­tem­plar, sem pensar em absoluta­mente nada. Pos­suíam-me sensa­ções mís­ticas e estéti­cas tremendamente exageradas ­e tudo me emocionava ex­tra­ordi­naria­mente. Pas­seava e ouvia música; era só o que conseguia fazer.
Estava completamente desenraizado. As únicas pessoas com quem me rela­ci­o­nava eram a Dora, os meus tios de Lis­boa e o Rui. Aconte­cia-me um fenó­meno es­tra­nho: sentia uma dupla emo­ção de aver­são e de simpatia por to­das as pes­soas, como se ti­vesse o coração cortado em dois. Pro­curava pes­soas mas não con­se­guia estar com elas muito tempo, queria companhia mas não su­por­tava ninguém.
Tinha, de facto, todos os sintomas de um esgotamento cerebral grave, de uma depressão.

A legitimidade revolucionária

Eram 11 horas da manhã do dia 17 de Outubro de 1974 e a minha mãe tinha posto o al­moço ao lume, quando dois homens no­vos à pai­sana bate­ram à porta e per­guntaram por mim. Mostrando-se sim­pá­tico, um deles disse-me que que­riam que os acom­pa­nhasse para es­clare­cer uns as­suntos ocorri­dos durante a minha prisão pela PIDE.
Dado o ar descontraído com que falavam, perguntei se era coisa sufi­ciente­mente rápida para que valesse a pena a minha mãe dei­xar o al­moço que es­tava a fazer à minha espera, e eles respon­de­ram-me que sim, que o almoço podia esperar. Desci as escadas e entrei num carro que estava à porta e diri­gimo-nos, tro­cando pou­cas palavras, a um quartel em Lisboa em cuja parada o auto­mó­vel esta­cou e onde me pediram que descesse.
O quartel era o de Lanceiros-2, perto da Ajuda, sede na altura da Po­lícia Mi­li­tar e co-dirigido pelo major Tomé, um dos oficiais do MFA que já aderira ao marxismo-leni­nismo. Estes oficiais, como toda a gente, anda­vam agora a des­cobrir a política e a fazer a sua opção partidária e, dado o na­moro que a es­querda re­volucionária lhes fazia e a espantosa agitação popular que o seu golpe de Es­tado tinha desen­cadeado, muitos deles eram facil­mente conquis­ta­dos por causas fantásticas e pas­savam a imagi­nar-se revolu­cio­nários.
Após esperar de pé na parada alguns minutos, aproximou-se um jipe da Polí­cia Militar e dirigiu-se-me um jo­vem oficial que me pe­diu para subir para a vi­atura e me disse:
- Esteve preso em Caxias ainda não há muito tempo, não es­teve? En­tão já não vai estranhar!...
O jipe arrancou e só então é que percebi que estava preso. Nin­guém me disse con­cretamente por­quê, nem me mostrou ne­nhum man­dato de cap­tura, e todos tinham um ar trocista e bem disposto. Um dos jo­vens, o mais alto, conhecia-o de vista per­feita­mente por­que era de Queluz. Lem­brava-me bem de que ele per­tencia a um grupo que costu­mava pa­rar no café central da vila, onde eu por vezes pas­sava nas minhas actividades clan­des­tinas e parava uns minutos a jo­gar bi­lhar, tentando aparentar um ar de jovem vulgar para enga­nar a PIDE. Era um grupo de rapazes rui­dosos que só se in­teressa­vam por carros, cervejas e miú­das, que nem tra­balhava nem estu­dava, e que na altura eu consi­derava se­rem malta sem interesse polí­tico. Era pois um des­ses que, tendo an­dado a gozar despreocu­pa­damente a juventude en­quanto eu me sa­crificava pela causa da revolução, agora me prendia em nome da revolu­ção!...
Ao chegar a Caxias fui levado pelos corredores que já conhecia e me­tido numa das celas grandes do antigo “re­gime normal”, daquelas que no tempo da PIDE, oito meses antes, tinham até seis pes­soas. Po­rém, agora, ha­viam sido mon­tados beli­ches e havia uns quinze ho­mens por cela. E outra sur­presa: os guardas prisionais eram os mes­mos!
Os guardas que tinham um sorriso trocista enquanto me levavam para a car­ri­nha da PIDE que me transpor­tava até ao Reduto Sul para os interro­gató­rios, o guarda Nelson que batera o postigo para me não deixar dormir na tarde do dia 23 de Maio do ano an­terior, até o chefe Palma, que testemu­nhara como me le­varam para o Re­duto Sul já de­pois de instruído o processo, que tantas diatri­bes vo­ci­ferara contra os outros presos quando eu fora cha­mado ao Di­rector da Ca­deia com ele pre­sente, que me levara ao encontro na prisão em que a PIDE me ha­via dito como me portar no jul­gamento, o chefe Palma conti­nuava a ser o mesmo chefe dos mesmos guardas! Como era possí­vel esta gente continuar no mesmo posto e eu também, na mesma rela­ção de eles carcereiros e eu preso?
Um dos guardas, ao reconhecer-me, disse-me:
- Olhe, nós aqui já vimos de tudo. Já cá tivemos presos que agora são minis­tros, e os ministros de então são agora nossos presos! Hão-de ser sempre precisos guardas para os presos políticos e esta é a nossa pro­fis­são...
Mas também os juízes do Tribunal Ple­nário que me ti­nham julgado e obede­cido às instruções da PIDE conde­nando-me, ainda que a uma pena branda, também eles conti­nuavam em serviço, como se fossem só meros juí­zes. Mas e eu, que me opu­sera ao re­gime e passara ali dez me­ses tão maus, é que era punido e por não ter sido herói? Mas e to­dos os outros que tam­bém o não ti­nham sido? Ou haveria alguma outra coisa envolvida na­quela pri­são? De que me acusa­riam ao certo?
Nos dias seguintes à minha prisão procurei nos jornais, que as fa­mí­lias leva­vam, notícias do que estava a acon­tecer. E alguns no­ti­cia­ram a minha prisão. O “Século”, por exemplo, informou: “Ex-preso nova­mente de­tido: Nas últimas ho­ras deu entrada numa das celas de Caxias José Luís Pinto de Sá, tam­bém sus­peito de acti­vidades re­accioná­rias. Curiosa­mente, Pinto de Sá já havia estado preso em Caxias, an­tes do 25 de Abril, portanto à ordem da PIDE/D-GS, tendo então sido jul­gado e ab­sol­vido”.

As prisões da revolução

Embora não parecesse um homem de acção, Gagean era um ho­mem respei­tado pelos agentes da PIDE e por Mú­rias. É que sabia-se que a “super-PIDE” fora o orga­nismo de Santos Costa e Salazar para espiar os pró­prios diri­gen­tes da polícia política, cuja venali­dade não só os levava por vezes a aboleta­rem-se com o di­nheiro do saco azul desti­nado aos informadores como a tor­na­rem-se es­pi­ões dos serviços se­cretos estrangei­ros, a quem vendiam por tuta e meia as próprias infor­mações que a PIDE obtinha. Era no­tório que Gagean conhecera muita gente desses Ser­viços Secre­tos es­trangeiros e até estagiara na sede da CIA nos EUA, mas o seu salazarismo ide­alista afigu­rava-se incorrup­tível. Engenheiro Electrotéc­nico, fora um matemático e fí­sico teórico brilhante, nos anos 40, e parti­lhava esses atributos com um amor pela Filosofia que era o que o levava a gos­tar de con­ver­sar co­migo, embora fosse um católico convicto.
Os agentes da PIDE, entretanto, não escondiam a raiva que sen­tiam pelos mi­lita­res, mais do que por quais­quer outros. Achavam que eles os tinham traído, tendo em conta a guerra con­junta tra­vada em África em que as suas informa­ções fre­quente­mente os ti­nham pou­pado a emboscadas e outras más surpre­sas, diziam. E, na verdade, muitos mi­litares tinham face a eles um sen­timento de culpa que mais tarde procuraria forma de os compensar pela des­leal­dade que sen­tiam ter sido o prendê-los.
Vivia-se um tempo de expectativa quando, no dia 11 de Março, es­tava eu no recreio e dei por que ha­via ca­ças a jacto em voo ra­sante sobre Lisboa. Minu­tos depois o Ar­mando apareceu com instru­ções para eu o acompa­nhar. Le­vou-me pelos cor­redores até uma velha cela abandonada na cave onde me disse que eu te­ria de fi­car até nova or­dem. Eles sabiam, de facto, que estava em curso uma tenta­tiva de golpe de Estado – desta vez, sim, era mesmo um golpe de Estado e não uma “in­ven­tona” – e por isso me punham sob custó­dia, para o que desse e vi­esse. Foi por poucas horas por­que o golpe falhou, mas não esqueci essa iró­nica ocorrên­cia de ter sido de­tido pela PIDE quando já es­tava preso pelo MFA...
Nessa mesma noite uma Assembleia do MFA iniciou a naciona­li­zação geral de todas as grandes empresas, da Banca às fábricas, e todos os spi­no­listas que não fugiram para o es­trangeiro tiveram ordem de pri­são e de ex­propria­ção dos bens pessoais. A Re­volução, em vez de ser travada, acele­rara impe­tuosamente.

A reconquista das almas e o fim da revolução

Daí em diante viveria os longos meses de prisão que ainda me es­pe­ra­vam com o coração na situa­ção simé­trica da vivida na prisão ante­rior: por fora, para os com­panheiros de prisão, aparentava dis­cor­dar como eles da revo­lu­ção em curso, mas no íntimo identifi­cava-me de alma e coração com ela, em particular com a UDP em que militavam agora os meus velhos cama­radas, de­vida­mente expurga­dos dos anti­gos oportunistas que esses, sim, é que ti­nham sido res­pon­sá­veis pela minha degenerescência. Só que isto não apa­gava a minha respon­sabi­lidade pessoal na trai­ção que come­tera e, por isso, tinha de enca­rar a questão de como poderia a mi­nha previsível morte às mãos da re­vo­lução ser ainda útil a essa mesma re­volu­ção!...
Ora na Peni­tenciária, por essa altura, já tudo se preparava para o grande momento em que se ini­ciasse a guerra civil e os fuzilado­res nos vi­essem bus­car. Uma ima­gem me vinha recorrentemente à mente, a ser con­duzido para o pátio do re­creio para aí ser executado junto à casa das caldeiras.
Conspirava-se na prisão, portanto. Era claro que os presos da PIDE e demais con­tra-re­volucio­ná­rios elabora­vam planos de fuga e de mo­tim e que tinham li­gações ao exterior, constando que eram as Briga­das Revolu­cionárias quem do lado da revolução ti­nha a incumbência de nos fuzilar quando começasse a guerra civil. Porém, esta activi­dade conspiratória para a defesa da prisão não abrangia to­dos: a mai­oria dos provo­cado­res infiltrados no PCP, espanto­sa­mente para quem não sabe como alguém se torna provo­cador, mantinha-se crente no co­mu­nismo e fiel ao Par­tido e or­gani­zava-se clandestinamente, por sua vez, se­gundo os esquemas tradi­cionais. Vi­sando, natural­mente, ser­vir ainda a velha causa de que, se alguma vez ti­nham duvi­dado, ti­nham agora a evi­dên­cia nas ruas da sua força e apoio popular. Por isso vi­giavam os ou­tros presos e manti­nham-se em con­tacto com a 5ª Di­visão, o orga­nismo de Infor­mações mi­litares que o PCP con­trolava, fa­zendo-lhe che­gar todas as in­forma­ções que con­sidera­vam úteis e prepa­rando-se para, quando chegasse a hora, de­fron­tar a PIDE e os seus planos de fuga e rebe­lião. Claro que não es­tendiam a sua trin­cheira aos que não tivessem sido do Par­tido, e por isso me ex­cluíam. E coloca­vam no mesmo lado inimigo também os mar­xis­tas-leni­nistas, como se pro­vava pelo facto de terem feito chegar ao Par­tido as fi­chas prisionais de Mar­tins Rodri­gues e d’Espinay que tinham sido en­contra­das na Peni­ten­ci­ária, de­vido ao seu pro­cesso de delito co­mum pela execução com um tiro na nuca do pro­vo­cador Ma­teus nas matas de Belas. E al­guns re­gistos pri­sio­nais que revela­vam que Pulido Va­lente, o herói do CM-LP que fora o único a re­sistir com sucesso à tor­tura da PIDE em 1965, esti­vera preso antes de­vido ao crime de “estu­pro de uma menor”...
Naturalmente os ex-agentes da PIDE, por sua vez, vigiavam estes elementos e em breve os co­me­çaram a ame­a­çar veladamente e a dar-lhes a en­tender o fim que lhes des­tinavam, criando uma ten­são que só se redu­ziu quando os dois cabecilhas da organização revisionista fo­ram inopinada­mente transfe­ri­dos para outra prisão. Por iniciativa de quem, nunca soube! Mas é duvi­doso que, caso a Revolução tri­un­fasse, os esperasse boa sorte, visto que alguém ouvira dizer aos mili­tares da “Comissão de Extin­ção” que, quando chegasse a hora, os an­tigos membros do Partido “seriam os primeiros”...

Resposta a José Manuel Fernandes

A propósito de “Conquistadores de Almas”, livro de que sou autor, foram abun­dantes as apreciações em jornais e em blogs, quase sempre positivas. No en­tanto, recentemente manifestaram-se algumas apreciações de ex-ma­o­ístas de militância contemporânea da minha, ori­gi­nando um de­bate que tem tido em José Manuel Fernandes (JMF) o prin­cipal prota­go­nista.
Como mostrarei no seguimento, o acinte dos ataques pessoais que JMF me dirigiu, no jornal de grande prestígio e audiência que dirige, é um eco das acusações de que fui objecto na imprensa marxista-leninista durante o PREC. A publi­cação do meu livro, 1/3 de século depois, é em boa parte a divulgação da de­fesa que me foi então impossível. Voluntaria­mente ou não, a crítica de JMF exprime a vontade que terão hoje alguns dos que então me atacaram sem me reconhecerem direito de defesa e que, não duvido, gostariam que conti­nuasse mudo e quedo para sempre. Os tempos são ou­tros, porém. No que se segue, refutarei por isso algumas dessas acusações, para discutir depois ques­tões mais gerais suscitáveis pelo li­vro e que são agora oportunas.
Comecemos, pois, por algumas das afirmações pontuais de JMF que não têm qualquer fundamento, nem na leitura do livro, nem na realidade dos factos.

1. Diz JMF que cresci num “ambiente pequeno-burguês”. Ora como re­lato no li­vro, sou filho e neto de operários, embora vivendo num meio colo­nial que os permite definir, segundo a teoria leninista, como “aris­to­cratas ope­rários”. Porém, a caracterização essencial desse ambi­ente não se en­caixa nas classificações “de classe” mar­xistas-leninistas (m-l), mas sim e espe­cificamente na cultura colo­nial do interior pro­fundo africano.

2. Segundo JMF, eu era tí­mido e foi por isso que me reduzi a tarefas de bas­ti­dores na mi­litância m-l; ora JMF confunde nesta apreciação vá­rios mo­mentos. Em pri­meiro lugar, a minha timidez política nos pri­meiros dois anos de Universidade resultava antes de mais do desconheci­mento das ra­zões ocul­tas das directivas associativas. Em segundo lugar, de uma in­ca­pacidade moral de manipular os estudantes, condu­zindo-os em acções de luta que me era óbvio serem contrárias aos seus interesses, que aliás desprezava. Re­cordando os meus colegas as­sociativos mais próximos da altura, veri­fico que essa ti­mi­dez era co­mum aos que ti­nham uma (in)experiência si­milar à mi­nha, e que só os mais velhos ou com forma­ção política ante­cedente sabiam o que dizer às “massas”.
Por ou­tro lado, no ano e meio seguinte, em que já tinha outra formação ideológica e efec­tivamente de­senvolvi ac­ções de bas­tido­res no movimento estudantil, a principal razão disso foi o ter então como acti­vi­dade principal e prioritá­ria a mi­li­tância com operá­rios, que era clandes­tina e exigia discrição.

3. Afirma também JMF, referindo-se às fragilidades afectivas expostas no li­vro, que em matéria de sexo eu “é que era diferente e tinha problemas afectivos”. Ora, se é verdade que aos 17-20 anos eu padecia de uma ig­no­rância e insegurança flagrantes nesse domínio, é fácil verificar que a soli­dão sexual que testemunho não era incomum. Basta recordar, mais uma vez, os meus co­le­gas associativos da época (no Instituto Su­perior Técnico sempre houve poucas raparigas...) para constatar que, en­tre os da minha idade, a solidão sexual era mais re­gra que excepção; que, por exemplo, dos onze jovens ligados aos CCRM-L e presos em 1972-73, seis não tinham relacio­namentos afec­tivo-sexu­ais. Como noutros aspectos destas memó­rias, o facto de eu re­latar o so­frimento correspon­dente não significa que ele fosse raro e que eu “fosse diferente». Claro que todos éramos diferen­tes, mas o que interessa sublinhar era o descuido da vida pessoal ine­rente à militância em que participei.

4. No seu segundo artigo contra mim, de 27 de Agosto, JMF faz-me um ata­que que é um primor de mentira, jogo de palavras e má fé. Depois de di­zer que a minha traição não era a regra mas a excepção, acrescenta que “mesmo o outro informador da PIDE que estava infiltrado entre os es­tudan­tes esquerdistas e que ele conheceu na prisão depois do 25 de Abril, para além de o identificar mal, “passou-se” para a polícia por moti­vos que nunca apurei mas nada tiveram a ver com os seus, porven­tura ainda foram mais ignóbeis”.
Em primeiro lugar, esclareçamos duas mentiras factu­ais: a) esse estu­dante, informador da PIDE infiltrado no PCP(m-l) de que JMF era mili­tante, está correctamente identificado no livro (pág. 282); b) nunca co­nheci pessoalmente esse indivíduo, por nunca termos partilhado o mesmo espaço prisional durante o PREC!
Em se­gundo lugar, esse indivíduo não se “passou” para a PIDE: era da PIDE, à qual se oferecera livre e voluntariamente! Ao igualar “passar-se” sob tortura para a PIDE, isto é, a submissão à sua violência no confina­mento da sua pri­são, com uma inscri­ção livre e vo­luntá­ria na sede da polí­cia, e ao referir ex­pres­sa­mente esse informador da PIDE como “o ou­tro”, JMF está sem rebuços a repetir as práticas do PREC com que colabo­rou na altura, en­quanto militante m-l e da UDP! Ora convém notar que os ju­ristas que propuse­ram o arqui­va­mento do pro­cesso que me foi instaurado no PREC se basearam precisa­mente nessa diferença de con­textos! Uma coisa era ter-se ins­crito livre e vo­luntaria­mente como infor­mador na sede da PIDE, per­tencendo aos res­pectivos quadros como o uso de pseudônimo e o re­porte a ele­mentos da Direcção de Infor­mações o pro­vava; ou­tra coisa era co­laborar com a polícia es­tando preso por ela, in­formando o mesmo ele­mento da Di­rec­ção de In­ves­tiga­ções (a que tortu­rava) que dirigira os autos proces­suais, obtidos com­provadamente sob coacção, e nos mesmos termos em que estes haviam sido manuscritos! Só quem considerava Trotsky tão "inimigo do povo" como Hitler pode comparar estas situações!

De um modo geral, a crítica de JMF pouco tem realmente a ver com o conte­údo do livro e é uma demonstração da incomodi­dade que ele provoca. É, po­rtanto, oportuno discutir alguns aspectos do que está em causa quer no li­vro, quer nas críticas de JMF.

Começando pela questão central da traição perante a violência da PIDE, é de esclarecer as razões por que se abjecta a traição, as quais se situam em duas instân­cias: morais e po­líticas.

A abjecção moral, segundo os valores correntes, existe quando na traição se logra uma vantagem pessoal em prejuízo daqueles a quem se deve lealdade. Quando, por exemplo, um militante troca a sua liberdade pes­soal pela prisão de camaradas. Traições houve, perante a PIDE, que propi­ci­a­ram emprego e exílio pago causando centenas de prisões. Este é o tipo de traição para o qual é previsto o mais duro dos castigos por todos os regula­mentos mili­tares de sempre e que obedece ao para­digma da traição de Judas.

Numa perspectiva extremista e radical, porém, é traição mesmo a simples troca de um alívio momentâneo da tortura por qual­quer informação prestada aos torcionários que cause algum dano à causa do torturado. Esta posição era, por exemplo, a dos CCRM-L em que eu mi­litei e ainda é perfi­lhada por alguns, invariavelmente com a intolerân­cia de quem nunca foi posto à prova. Intolerância imprópria da moral cristã, por exem­plo, que se condena Judas perdoa a Pedro a sua tripla negação da condição de apóstolo por medo da prisão, e que nem a rígida or­todoxia do PCP de Cunhal praticava (ainda que conside­rando tal ní­vel de traição, classificado como “fraqueza”, indigna da pertença à “van­guarda” revolucionária do Partido clandestino).

Entre estes extremos de traição situa-se muitos graus de fra­queza moral, e a tolerância que suscitam depende da atitude perante a pessoa humana de quem julga. Ora é de assinalar que todos os que se conservaram meus amigos durante a minha prisão pelo PREC eram de esquerda. De facto, a moral corrente é compas­siva com a traição praticada em con­dições de coacção, e um bom exemplo disso foi a posição de Guterres e de Ramos Horta de continua­rem a apoiar e a enco­rajar Xanana Gusmão mesmo após este, preso pelos mi­litares indo­né­sios, se ter deixado filmar para todo o mundo a confraternizar com os seus torcionários e a dizer que “também era indonésio”, o que aca­bou por efecti­vamente recuperar Xanana para a causa independista. Vale a pena notar, já agora, que posição oposta ma­nifestou na altura o PCP ao denunciar publica­mente Xanana como trai­dor, e que a ter o povo português apoiado tal postura certamente que Timor não teria al­can­çado tão cedo a liberdade...

Por outro lado, de um ponto de vista político a traição é abjecta, mesmo quando praticada por idealismo e desinteressadamente, se for consensual a natureza malsã da causa que servir. JMF pensa ser óbvio que a escondida juvenil adesão de Gunter Grass às SS ou a minha colaboração juvenil com a PIDE, quando preso por esta, merecem tal abjecção, apesar da sua própria evolução de m-l albanista em 1979 para bushista convicto em 2003. Pare­ce também não se ter desfeito da intolerância perante o “erro” alheio de que foi prati­cante quando era estalinista, intolerância que se aplicasse a si próprio cer­tamente não lhe permitiria dizer o que diz. Mais uma vez, e a título de referência moral, ocorre evocar a atitude cristã perante os erros passados, ilustrada no convite por Cristo a que “atirasse a primeira pedra quem nunca tivesse pecado”...

Vale ainda a pena notar que há por vezes contradição entre o julga­mento moral e o político de uma traição. As FP-25, por exemplo, que já em demo­cracia praticaram múltiplos assassinatos e outras violências, só foram des­manteladas graças à traição de alguns “arrependidos” que parece terem tido motivos pouco nobres para tal. E a obtenção de traições de membros da Al Qaeda que possa evitar assassinatos maciços contra civis inocentes é hoje uma questão que não oferecerá grandes dúvidas.

Postas estas considerações, é agora de clarificar como os métodos de tortura da PIDE, em 1973, podiam conduzir à “conquista das almas” ou, usando uma linguagem m-l, à resolução de contradições pessoais no sentido favorá­vel ao regime colonial-fascista.

No processo de tortura a que fui submetido pela PIDE, em que comecei a prestar declarações ao 23º dia de prisão, a pior parte foram os 20 dias de terror e ansiedade em que esperei, em isolamento e privação sensorial, pela “minha vez” de pancada e torturas do sono e estátua. Quando estas chegaram, eu já estava esgotado pelo terror e pela ansiedade prolongados.

Para quem nada sabe disto como JMF, isto pode parecer cobardia “ab­jecta”. E no entanto, veja-se o que diz o “relatório Kubark”, o manual da CIA publi­cado internamente em 1963 (desclassificado há poucos anos): “The threat of coercion usually weakens or destroys resistance more effec­ti­vely than co­ercion itself. The threat to inflict pain, for example, can trigger fears more dama­g­ing than the immediate sensa­tion of pain. In fact, most people underes­timate their capacity to withstand pain. The same principle holds for other fears: sustained long enough, a strong fear of anything vague or unknown induces regres­sion, whereas the materialization of the fear, the in­fliction of some form of punish­ment, is likely to come as a relief. The subject finds that he can hold out, and his re­sistances are strength­ened. In general, direct physical brutality creates only resent­ment, hostility, and further defiance.

E porquê o violento terror e a ansiedade que sofri naqueles dias? Em pri­meiro lugar, pela convicção de que só raríssimos tinham conse­guido resistir à tortura nos anos anteriores, como está claramente narrado no li­vro! Esse era precisamente o indício mais claro do que me esperava, consi­de­r­ando o grau de incriminação das provas contra mim na posse da PIDE. JMF acusa-me de “vestir o papel de vítima para mostrar que trair era normal”; ora para além do descabimento desta acusação, se é verdade que no livro vou descre­vendo, antes de ser torturado, como estava conven­cido de que a derrota pe­rante a PIDE era a regra, essa convicção era genuína e vi­ria a ser precisa­mente a razão principal do terror que viveria na pri­são! E é também verdade que todos os m-l que depois conheci, ou de cuja pri­são tive conhecimento detalhado, cederam nos interrogatórios da PIDE. Os seus au­tos existem! JMF diz que “conserva muitos amigos que resistiram” (à tor­tura); presumo que sejam ex-camaradas seus m-l. Pois eu nunca co­nheci pes­soalmente ne­nhum m-l que tivesse resistido com sucesso, embora admita que existam, ainda que relativamente a alguns com dúvidas quanto ao grau de tortura que sofreram! “Resis­tir” para depois ser vencido, isso também eu resisti, como é documental­mente comprovável pelo conteúdo e datas dos autos ar­quivados na torre do Tombo e como foi expressamente reconhecido pelos juris­tas que propuseram o arquivamento do meu processo instaurado no PREC.
Certo é que essa ansiedade, no ambiente de confinamento celular e de priva­ção sensorial em que estive, produziu um efeito terrível. Nada de invulgar, se tivermos em conta o que sobre tal situação afirma o “relatório Kubark”: “The more completely the place of confinement eliminates sensory stimuli, the more rapi­dly and deeply will the interrogatee be affected. … An early effect of such an en­vironment is anxiety. The interrogator can benefit from the subject's anxiety. As the interrogator becomes linked in the subject's mind with the reward of lessened anxiety, human contact, and meaningful activity, and thus with providing relief for growing discomfort, the questioner assumes a be­ne­volent role. (7)4. The deprivation of stimuli induces regression by de­pri­v­ing the subject's mind of contact with an outer world and thus forcing it in upon itself. At the same time, the calculated provision of stimuli du­ring interrogation tends to make the regressed subject view the inter­ro­gator as a father-figure. The result, normally, is a strengthening of the subject's tendencies toward compliance.”
A narrativa da minha experiência pessoal é um exemplo perfeito da aplicação desta teoria! No entanto, devo dizer que só conheci o relató­rio Kubark há pouco tempo, já o livro estava publicado...

Depois daquelas semanas de terror e ansiedade esgotantes, vieram final­mente os interrogatórios que, como o referido relatório também recomenda, centravam a violência na fadiga (sono, estátua) e no pavor. O objectivo de­s­tes processos é taxativamente expresso no sumário do relatório: “All coer­cive techniques are designed to induce regression. ...3. The usual ef­fect of co­ercion is re­gression. The interrogatee's mature defenses crumbles as he be­comes more childlike. During the process of regression the subject may experi­ence feelings of guilt, and it is usually useful to intensify these. 4. When regression has proceeded far enough so that the subject's desire to yield begins to overbal­ance his resistance, the interrogator should supply a face-saving rationalization. Like the coercive technique, the rationali­zation must be carefully chosen to fit the subject's personality. 5. The pressures of du­ress should be slackened or lifted after compliance has been obtained, so that the in­terrogatee's voluntary cooperation will not be impeded. ... If the inter­rogatee re­mains semi-hostile or re­mor­seful after a successful interrogation has ended, less time may be required to com­plete his conversion (and conceivably to create an enduring asset) than might be nee­ded to deal with his antagonism if he is merely squeezed and for­gotten.
Toda a experiência pessoal que vivi disto consta no livro, e du­vido que ve­nham a surgir outras descrições com igual sinceridade. Primeiro por que já passou 1/3 de século sobre a queda do regime e é quase impossível manter intactas memórias detalhadas após tanto tempo; segundo por que tais ex­peri­ências são coisas de que a sanidade mental recomenda o es­queci­mento; e terceiro por que uma derrota destas não era coisa que na al­tura al­guém gostasse de re­gistar por es­crito. Se eu o fiz foi só por que a prisão pelo PREC e as acusações então so­fridas me obrigaram a encarar a questão!
E, no entanto, apesar de nunca ninguém antes ter contado publicamente como cedeu à tortura, a coincidência entre a teoria do relatório Kubark e a minha experiência deve ser, estou convencido, apenas um exemplo de uma regra geral. Naturalmente, com diferenças pessoais de caso para caso.
O processo de regressão infantilizante provocado pela tortura sobrepunha, portanto, aos laços ideológicos e afectivos criados na mi­litância os com a PIDE e os de origem familiar. Por que é que, no meu caso, isso me re­condu­ziu às convicções colonialistas e à colaboração convicta com a PIDE, durante a pri­são?
A fraqueza dos laços m-l está bem documentada no livro, como é reconhecido por Joffre Justino. Justi­fica-se, po­rém, que clarifique a força dos laços de origem e os dilemas que criava.

Eu tinha, e mantenho-a hoje de forma clara e assumida, uma identidade fortíssima associada ao interior africano. A África profunda começa por ser completamente diferente de Portugal nos cheiros, nos sons e nos espaços. Depois, havia uma enorme diferença de mentalidades, com aquela em que fui criado a partilhar muitos traços com as de outros países de origem colo­nial (nomeadamente os EUA): hábitos de autonomia e iniciativa no tra­balho, disponibilidade para a entre-ajuda imediata e incondicional, práticas de re­lacionamento fácil e solidário e um forte sentimento de ligação directa aos resultados do trabalho colectivo. Tudo o que existia – dos hospitais às esco­las, passando pelas povoações e locais de trabalho – era fruto directo e pes­soal da pequena comunidade em que nasci e cresci. O Estado não tinha lá presença, a não ser pelos aquartelamentos militares de passa­gem, e Por­tugal era uma construção ideológica longínqua e as mais das vezes desagradá­vel, presente, por exemplo, na obrigação de estudar minuciosa­mente floras e ge­ografias que nada tinham a ver com o nosso mundo.
Esta identidade é tão forte que ainda persiste hoje, 1/3 de século passado, para a esmagadora maioria dos que viveram lá algum tempo, traduzida em laços de solidariedade de que muito dificilmente se encontra paralelo em Portugal. Nos últimos anos a internet permitiu a recriação desta comunidade cu­jos membros se encontram dispersos por todo o mundo, já que não mais de metade conseguiu dolorosamente adaptar-se a viver em Portugal (a maio­ria dos que se dispersaram radicou-se no continente ameri­cano, mas há-os de Mo­çambique à Austrália). Só para dar uma idéia da identidade de que falo, esta comunidade virtual conta com duas cente­nas e meia de membros, apesar da região onde crescemos nunca ter tido mais de um milhar de famí­lias portuguesas, para uma superfície territo­rial que era me­tade da de Por­tugal. Muitas relações pessoais directas foram recons­truídas a partir desta relação virtual e eu até recasei com alguém de lá!
A dupla natureza operária e colonial da minha ascendência familiar (os meus pais e avós viviam em casas lado a lado) reforçava, no meu caso, esse sentimento do direito àquilo que eu testemunhava ser obra nossa, a começar pelos meus pais e avós – como também se descreve no livro. Aliás, um bom exemplo da força desse sentimento ocorreu quando, nos anos 80, a UNITA atacou pela primeira vez a região e raptou os portugueses resi­dentes. Apesar de pouco partidários da ideologia comunista do MPLA de en­tão, os portugue­ses defenderam as instalações e os raptados voltaram to­dos logo que foram libertados no Zaire. É que antes de mais sen­tiam aquilo como obra sua e também lhe pertenciam, e o poder político era-lhes secundário!
Acontecia que antes do 25 de Abril os colonos viam a luta armada indepen­dista como destinada a expulsá-los da que se tornara a sua terra, como a chegada (que testemunhei) em estado de choque e fuga desordenada dos vi­zinhos colonos belgas do Shaba anunciara em 1960, e portanto o regime co­lonial-fascista não tinha contestação – ainda que alguns colonos, e entre eles o meu avô, operário barreirense, tivessem uma história metropolitana de oposição ao regime e o meu pai também nunca tivesse gostado de Salazar. A presença colonial era vista como justa, os militares destacados para a região eram estimados, e todos crescíamos a pensar que um dia nos caberia natu­ralmente a obrigação de ir fazer a nossa parte da guerra – com muitos a ofe­recerem-se para as tropas de élite. A PIDE tra­balhava às claras e era aceite socialmente, apesar de com algum embaraço pela memória da sua actividade em Portugal. Havia o sentimento de se per­tencer a uma minoria civilizada no meio de uma vastidão de bárba­ros e de um mundo que não nos compreen­dia, sentimento que muito mais tarde des­cobri ser idêntico ao dos boers sul-africanos e ao dos is­raelitas.
Neste contexto, é evidente que a minha adesão ao movimento marxista-leni­nista em Portugal foi a minha primeira traição! Antes de mais pe­rante os meus pais, de quem, recorde-se, ainda dependia completamente, mas tam­bém perante os meus amigos de infância e toda aquela comunidade. E de tal maneira tive disso um sentimento de culpa – obviamente despoletado e in­tensificado pela “lavagem ao cérebro” da PIDE - que, mesmo após a minha tentativa de reparação dessa traição com a outra que o livro narra, só ¼ de século depois retomei contactos e refiz amizades com aqueles que assim tra­íra – mais fa­cilmente, como se vê, que com os outros, o que só re­força a mi­nha consciên­cia de que é a esta comunidade que pertenço!

Claro que tudo isto era a realidade com que me debati na prisão da PIDE, antes do 25 de Abril. E que mostrou a Historia, depois?

Em primeiro lugar, que a identidade africana desta comunidade a que per­tenço é que é determinante, e não a colonial-fascista. Muitos da mi­nha gera­ção tentaram ficar após a independência, “descobrindo” a política e procu­rando participar na nova realidade independentista. Vários voltaram mesmo a fazer a guerra (civil) ao lado do MPLA, e desses alguns nela tombaram. Outros foram para outras paragens africanas, adaptando-se aos novos regi­mes políticos e raciais mas não a viver em Portugal. Mas os colo­nos tinham razão ao pensarem que a derrota na guerra significaria a sua ex­pulsão; to­dos, mesmo os que aderiram ao MPLA, acabaram por vir embora – com a única excepção da minha amiga São Neto...
Vale a pena entretanto recordar que os dirigentes dos CCRM-L em que militei defendiam a tese de que a independência das colônias significaria um reforço do fascimo em Portugal, devido ao previsível regresso dos colonos reaccionários, que em 1974 a UDP apelava à “repressão sobre os reaccionários brancos” que contestavam a entrega incondicional do poder ao MPLA e, de um modo geral, que a posi­ção dos comunistas portugueses era a de ser melhor que não voltassem. Deve-se ao MFA a protecção e guarida que Portugal deu ao quase meio mi­lhão de refugiados provocados pela descoloni­zação e pelas guerras civis que se lhe sucederam de imediato.
Hoje, passados tantos anos, a memória da opressão racial já se esfumou de um lado e do outro, e com a paz crescem os casos de regresso e cooperação com a nova realidade. Os negros das colônias sentem-se indubitavelmente mais fe­lizes na dignidade que agora têm (embora o poder político ainda pa­deça de certos preconceitos, mais por conveniência política que por ressenti­mento ra­cial), e os brancos descobriram que afinal não é necessário um quase-apar­theid nem uma ditadura política para poderem lá sentir-se em casa e vive­rem bem. Para esta distensão muito tem também contribuído a boa aceitação por Portugal dos imigrantes provenientes das ex-colónias e a maciça ajuda internacional prestada às populações daqueles países. É por aí que certamente irá o futuro que a África bem pre­cisa!
Entretanto, e ainda a propósito da “abjecção” imputada por JMF aos que colaboravam com aqueles que reprimiam “os que defen­diam as suas idéias”, é oportuno notar que se assiste em muitos ex-maoís­tas, particularmente nos que depois do 25 de Abril apoiaram activa­mente o PREC militando na UDP, a uma atitude revisionista do seu ideário de então, branqueado agora de “luta pela liberdade”. Importa recordar que os m-l não lutavam por nada que se parecesse com o regime que a 25 de Abril de 74 lhes caiu no regaço. Os m-l da UDP a que pertenceram JMF e Rui Be­biano tinham por programa a “insurreição popular armada” e a guerra civil que denominavam de “guerra popular”, para já não mencionar que o modelo final de sociedade que preco­nizavam era o albanês de Enver Hojda! A luta armada que os m-l preconizavam só se distin­guia da das BR de Isabel do Carmo e Carlos Antunes por divergências de oportunidade – vanguardista exemplar nas BR, ao estilo castrista, de “mas­sas” nos m-l, segundo o modelo maoísta. E, quando al­guns dizem agora, para explicarem como “lutavam pela liberdade”, que “a ditadura do proletari­ado era vista como a forma mais democrática e mais justa das utopias”, ape­tece recordar que tam­bém o regime anterior via o colonialismo como a forma mais justa de patriotismo, mas que esta­vam todos engana­dos. O jul­gamento político das actividades de há 1/3 de século tem de ser feito à luz do que a História depois ensi­nou e dos valores de hoje, requerendo a todos a honesti­dade de chamarem as coisas pelos seus nomes e de evitarem jogos de palavras.

E para terminar, a propósito do revisionismo em curso relativamente ao ma­oísmo no PREC, convém recordar a JMF que as militâncias de então não fo­ram simples “desvarios juvenis” sem consequências. Tiveram pesadas con­sequências para muita gente, com co-responsabilidade nas prisões arbitrárias e nos 12 mil “saneados”, pas­sando pelo meio milhão de refugiados das colónias e pelo maior crime: a exportação para Timor, onde nunca houvera contestação à presença por­tuguesa, de um ma­oísmo vi­olento, sabendo-se que ao lado, na gigantesca Indonésia, havia um regime fas­cista que dez anos antes não hesitara em as­sassinar um milhão de comu­nistas e seus apoiantes e que jamais toleraria um Timor revolucionário! Maoísmo esse que desencadeou uma guerra civil que por sua vez provocou a invasão genocida indonésia e que, contas feitas, deu origem a duzentos mil mortos (1/3 da população de Timor) e a décadas de sofrimento!
É por isso que indigna ver alguns ex-maoístas, como JMF, agora convertidos ao "sistema" e que de caminho abando­naram, como se não tivesse sido nada, aqueles a quem antes apelavam à revolu­ção (deixando-os em muitos casos em maus lençóis), ainda virem hoje acusar ou­tros de traição “abjecta”...