Foi no liceu Camões, dos 15 para os 16 anos, que comecei a despertar para as questões políticas. Passei todo o ano lectivo vivendo em Queluz e indo todos os dias para Lisboa. Aqui, além do contacto com a Filosofia me agudizar as angústias existenciais que já trazia, conheci um certo embrião de movimento estudantil, que aproveitava as aulas de Moral, de Filosofia e de “Organização Política” para colocar os problemas da guerra, da injustiça social e da opressão, embora na base de generalidades. Era o padre responsável pelas aulas de moral que promovia este tipo de discussões, mas já o professor de “Organização Política” e de Filosofia, onde se provava a existência de Deus como programa obrigatório, e que acumulava esse lugar com o de instrutor da Mocidade Portuguesa, era fonte de constantes conflitos.
Foi nessa altura que conheci o Fred, meu colega de turma, embora nunca tivesse participado no seu grupo contestatário e ele tivesse então de mim a ideia de que eu era um reaccionário. Realmente havia uma coisa que eu não podia suportar nele e nos amigos: o anti-colonialismo, que era nesses colegas uma atitude que não aceitava discussões.
Condenar o direito dos portugueses a Angola, para quem nascera lá, numa terra onde tudo fora construído pelo meu pai, o meu avô, e pelos pais dos meus amigos de infância, era-me uma afronta! Para o Fred, naturalmente, as minhas posições eram as do regime que ele odiava, e só anos depois eu viria a compreender que aquilo era de família, dado o pai dele ser um velho militante do Partido Comunista.
O Fred, no entanto, com o seu cabelo comprido e a liberdade que o pai lhe dava para ir assistir ao grande “meeting” internacional de rock na ilha de Man, era fonte de inveja para mim, a quem o meu pai não tolerava tais desmandos. Mais de uma vez ousou ele ir para o liceu sem gravata, merecendo com isso a expulsão da aula pelo professor de “Organização Política”. Mas eram acções que eu me limitava a admirar.
Deste modo, foi apenas superficialmente que as preocupações políticas daqueles jovens me afectaram ...
Conquistadores de Almas
Extractos de todos os capítulos do livro com este título
quinta-feira, julho 06, 2006
Do movimento estudantil ao marxismo
Finalmente a Direcção resolveu lançar-se no trabalho de massas e enviou um dos seus elementos, o Rui Henriques, para orientar os associativos do 1º ano. Não conseguindo dar ao Movimento Associativo, como movimento de massas, a tal alternativa revolucionária deduzida em teoria da nova definição de Democratização do Ensino, a Direcção procurou apenas fazer avançar a Reforma o mais possível, ligando às massas os quadros associativos através da “Abertura aos Cursos”. Assim se desencadeou um conjunto de movimentações por reestruturações das cadeiras, por alargamento dos funis selectivos, contra o autoritarismo dos catedráticos, objectivos imediatos capazes de mobilizarem os estudantes e em torno dos quais se procurava propagandear a consciência da função da Universidade na luta de classes, a de formação dos “cães de guarda da burguesia”. E, da premissa de que a Universidade servia o capital, o corolário prático que espontaneamente se deduzia era o desejo de a destruir, o que levava a becos sem saída para a multidão de estudantes, mas de conclusões óbvias para os associativos: a necessidade de ultrapassar os limites da luta na Universidade.
Como novato e inexperiente que eu era, nestas lutas do 1º ano tive pequena participação e não cheguei a tirar, nem de longe, as consequências finais sobre os limites do Movimento Associativo. Apenas na eliminação da cadeira de Geometria Descritiva e no correspondente afastamento do seu catedrático tive uma participação significativa. Como fora a disciplina em que eu até sempre tivera melhores notas, o ponto de vista da maioria dos estudantes conservadores de que queríamos acabar com ela por oportunismo podia ser rebatido pelo meu exemplo, que ao argumento de que a cadeira valia pelo seu carácter formativo rebati que para formação do intelecto era preferível jogar xadrez. Mera retórica, pois nunca tive paciência para tal passatempo…
Inconsciente e espontaneamente, lutava pela destruição da Universidade, dado que ela só servia o capital, radicalizando as lutas o mais possível. Estas lutas foram importantes sobretudo para a construção duma forte coesão dos associativos do 1º ano e para o seu enraizamento na Associação e na combatividade revolucionária. Foi de facto nestes processos que se reforçaram os meus laços com colegas como o Fred, a Margie, e o Alberto Matos, que eram bons oradores e muito estimados pelos estudantes que nos apoiavam.
Evidentemente, a face política concreta do país manteve-se-me inteiramente desconhecida. Ou melhor, a face das lutas populares, porque na Associação os líderes discutiam muito as contradições de interesses entre industriais, banqueiros e latifundiários. Do povo só soube, por cartazes, das manifes populares do 1º de Maio desse ano de 1970 no Barreiro, de certas greves e de prisões anunciadas pela Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Com regularidade, os jornais relatavam julgamentos políticos e, de vez em quando, alguns eram de estudantes oriundos da Diamang, mais velhos que eu e filhos de “fumos” do Dundo que eu não chegara a conhecer, como os do Eng.º Oliveira, os do Eng.º Rego e a filha Diana do antigo director-geral Eng.º Andringa, esta acusada de colaboração com o próprio MPLA...! Coisa que me enchia de orgulho e, ao mesmo tempo, algum medo...
Como novato e inexperiente que eu era, nestas lutas do 1º ano tive pequena participação e não cheguei a tirar, nem de longe, as consequências finais sobre os limites do Movimento Associativo. Apenas na eliminação da cadeira de Geometria Descritiva e no correspondente afastamento do seu catedrático tive uma participação significativa. Como fora a disciplina em que eu até sempre tivera melhores notas, o ponto de vista da maioria dos estudantes conservadores de que queríamos acabar com ela por oportunismo podia ser rebatido pelo meu exemplo, que ao argumento de que a cadeira valia pelo seu carácter formativo rebati que para formação do intelecto era preferível jogar xadrez. Mera retórica, pois nunca tive paciência para tal passatempo…
Inconsciente e espontaneamente, lutava pela destruição da Universidade, dado que ela só servia o capital, radicalizando as lutas o mais possível. Estas lutas foram importantes sobretudo para a construção duma forte coesão dos associativos do 1º ano e para o seu enraizamento na Associação e na combatividade revolucionária. Foi de facto nestes processos que se reforçaram os meus laços com colegas como o Fred, a Margie, e o Alberto Matos, que eram bons oradores e muito estimados pelos estudantes que nos apoiavam.
Evidentemente, a face política concreta do país manteve-se-me inteiramente desconhecida. Ou melhor, a face das lutas populares, porque na Associação os líderes discutiam muito as contradições de interesses entre industriais, banqueiros e latifundiários. Do povo só soube, por cartazes, das manifes populares do 1º de Maio desse ano de 1970 no Barreiro, de certas greves e de prisões anunciadas pela Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Com regularidade, os jornais relatavam julgamentos políticos e, de vez em quando, alguns eram de estudantes oriundos da Diamang, mais velhos que eu e filhos de “fumos” do Dundo que eu não chegara a conhecer, como os do Eng.º Oliveira, os do Eng.º Rego e a filha Diana do antigo director-geral Eng.º Andringa, esta acusada de colaboração com o próprio MPLA...! Coisa que me enchia de orgulho e, ao mesmo tempo, algum medo...
Do marxismo à descoberta da Organização
No início de Fevereiro o Carlos António, após uma reunião de associativos, abordou-me e perguntou-me se eu queria trabalhar politicamente fora da Associação.
O Carlos era um indivíduo de má catadura, franzino, baixinho, com manchas na cara, apagado como líder e com dificuldades em falar em público, bastante autoritário e antipático e com quem eu nunca falara; mas, como pertencia à Direcção presidida por Vieira Lopes , integrava-se naquele núcleo que eu admirava profundamente e por quem tinha uma confiança cega. Por isso o seu convite deixou-me nas nuvens, maravilhado e cheio de contentamento. Humildemente aceitei, claro, pois militar politicamente, ser digno dessa honra, era a coisa que eu mais ambicionava na vida, e simultaneamente fiquei entontecido com a pesada responsabilidade que me acabava de ser confiada, dado não me sentir à altura dela.
Houve então uma reunião na casa dos pais do Fred, num ambiente de semi-penumbra em que a tensão mal me permitia respirar. Era uma casa numa Avenida Nova, zona rica de hippies e drogados finos, que eram os que havia na época.
O Carlos avisara-me para tentar observar se era seguido. Estavam lá, além de mim e do Carlos, o Fred e o Rui Henriques. Falou-se sobre colonialismo, e o Carlos leu em voz alta o texto “Os comunistas e a questão colonial”, que eu recebera na caixa do correio cerca de um ano antes e que, viria mais tarde a saber, fora precisamente o Carlos quem o lá colocara. Percebi pouco e teria preferido lê-lo sozinho, pausadamente, mas o respeito pelo Carlos não mo permitiu dizer. Este documento fora um dos redigidos por Francisco Martins Rodrigues em 1964, e era uma crítica teórica à linha de Cunhal no PCP. Obviamente um texto difícil para um recém-iniciado na teoria marxista e desconhecedor da vida clandestina portuguesa. Só o Fred, cujo pai fora do PCP e o educara contra o regime, talvez o entendesse. Eu, do colonialismo, a única coisa que percebia era a experiência pessoal que tivera, e que descrevi de novo àqueles camaradas.
O Carlos falou depois em enviar textos a militares, para os levar à deserção, e em reconhecimentos a fazer em quartéis, mas sem se concretizar nenhum plano concreto. Era a acção prática que o marxismo exigia sempre. Limitei-me a ouvir tudo com grande humildade. O Rui Henriques e o Fred pouco falaram.
Dias depois houve nova reunião em casa do Carlos que, oriundo das Caldas da Rainha, vivia num apartamento alugado com a irmã, mas desta vez o Rui Henriques não foi; o Carlos voltou a ler em voz alta um documento, o “Bandeira Vermelha” nº 1, jornal teórico do MRPP, e desta vez ousei sugerir que talvez fosse melhor lê-lo cada um e discutirmo-lo depois. O Carlos olhou-me rispidamente e disse que era ele quem dirigia os métodos de trabalho. Claro que me calei logo, muito envergonhado. Não voltou a haver reuniões.
Por isso, dias depois abeirei-me do Carlos e perguntei-lhe quando é que voltávamos ao trabalho.
O Carlos levou-me à sala da Direcção da Associação e, de uma gaveta, retirou um molho de panfletos variados que me entregou; jornais como “Servir o Povo” (UEC(m-l)), “Unidade Popular” (CM-LP), textos da EDE, outros do MRPP, colectâneas como “África Livre”, “Cadernos Necessários”, etc. Ou seja, um conjunto extremamente ecléctico que me permitia um primeiro conhecimento da vida política clandestina no país e que não comprometia o Carlos.
Como a mistura dos textos me confundia, dividi a papelada por organizações e iniciei meticulosamente o seu estudo. Comecei pelo “Servir o Povo” e pelo “Unidade Popular” e, como tudo o que lá vinha me parecesse conforme com os livros que recentemente lera, e como se atacava o revisionismo do PCP, não achei nada de mau nos textos. Foi o que disse ao Carlos num encontro posterior em sua casa. O Fred também já deixara de comparecer.
O Carlos no entanto não partilhou a minha apreciação positiva dos papéis e apontou-me a seguinte fraqueza neles: não havia lá nenhuma análise concreta da vida portuguesa. Tudo se resumia a citações dos “clássicos” (a plêiade de profetas constituída por Marx, Engels, Lenine, Estaline e Mao), proclamações e palavreado. Cego na minha confiança nele, na sua sabedoria e consciência política, identifiquei-me imediatamente com a sua opinião. E depois, reflectindo, considerei que se verificara ali a desobediência ao que Mao indicava nas suas obras: a necessidade de análise concreta, de “inquérito” e de investigação, de combate ao dogmatismo e ao culto do livro. Coisa que também sublinhara Lenine: “a essência do marxismo é a análise concreta da realidade concreta”.
Seguidamente estudei a papelada da EDE e do MRPP e achei que o esforço teórico ali realizado já satisfazia a necessidade de análises concretas, nomeadamente no “Bandeira Vermelha”. Por isso disse ao Carlos, no fim do estudo, a minha opinião positiva. Mais uma vez ele não partilhou da minha opinião e apontou-me algumas contradições dos textos, que não compreendi bem. No entanto de novo a confiança ilimitada no experiente Carlos me levou a identificar cegamente com o seu desagrado pelo MRPP.
E assim de um modo geral sucedeu com os outros textos e organizações.Por fim o Carlos emprestou-me um volumoso jornal de 70 páginas, o “Viva o Comunismo!” n.º 2/3, órgão teórico dos CCRM-L e, como a este jornal não fez qualquer crítica, concluí que era ele o da sua simpatia e por isso, e também porque a riqueza cultural das análises satisfazia a minha curiosidade acerca da política nacional, e ainda porque a apreciação dos intentos liberalizantes e reformistas do marcelismo encaixava com o que diziam Mariano Gago e Vieira Lopes acerca da Reforma do ensino de Veiga Simão, por tudo isso os CCRM-L se tornaram da minha simpatia, como se fossem um clube de futebol...
O Carlos era um indivíduo de má catadura, franzino, baixinho, com manchas na cara, apagado como líder e com dificuldades em falar em público, bastante autoritário e antipático e com quem eu nunca falara; mas, como pertencia à Direcção presidida por Vieira Lopes , integrava-se naquele núcleo que eu admirava profundamente e por quem tinha uma confiança cega. Por isso o seu convite deixou-me nas nuvens, maravilhado e cheio de contentamento. Humildemente aceitei, claro, pois militar politicamente, ser digno dessa honra, era a coisa que eu mais ambicionava na vida, e simultaneamente fiquei entontecido com a pesada responsabilidade que me acabava de ser confiada, dado não me sentir à altura dela.
Houve então uma reunião na casa dos pais do Fred, num ambiente de semi-penumbra em que a tensão mal me permitia respirar. Era uma casa numa Avenida Nova, zona rica de hippies e drogados finos, que eram os que havia na época.
O Carlos avisara-me para tentar observar se era seguido. Estavam lá, além de mim e do Carlos, o Fred e o Rui Henriques. Falou-se sobre colonialismo, e o Carlos leu em voz alta o texto “Os comunistas e a questão colonial”, que eu recebera na caixa do correio cerca de um ano antes e que, viria mais tarde a saber, fora precisamente o Carlos quem o lá colocara. Percebi pouco e teria preferido lê-lo sozinho, pausadamente, mas o respeito pelo Carlos não mo permitiu dizer. Este documento fora um dos redigidos por Francisco Martins Rodrigues em 1964, e era uma crítica teórica à linha de Cunhal no PCP. Obviamente um texto difícil para um recém-iniciado na teoria marxista e desconhecedor da vida clandestina portuguesa. Só o Fred, cujo pai fora do PCP e o educara contra o regime, talvez o entendesse. Eu, do colonialismo, a única coisa que percebia era a experiência pessoal que tivera, e que descrevi de novo àqueles camaradas.
O Carlos falou depois em enviar textos a militares, para os levar à deserção, e em reconhecimentos a fazer em quartéis, mas sem se concretizar nenhum plano concreto. Era a acção prática que o marxismo exigia sempre. Limitei-me a ouvir tudo com grande humildade. O Rui Henriques e o Fred pouco falaram.
Dias depois houve nova reunião em casa do Carlos que, oriundo das Caldas da Rainha, vivia num apartamento alugado com a irmã, mas desta vez o Rui Henriques não foi; o Carlos voltou a ler em voz alta um documento, o “Bandeira Vermelha” nº 1, jornal teórico do MRPP, e desta vez ousei sugerir que talvez fosse melhor lê-lo cada um e discutirmo-lo depois. O Carlos olhou-me rispidamente e disse que era ele quem dirigia os métodos de trabalho. Claro que me calei logo, muito envergonhado. Não voltou a haver reuniões.
Por isso, dias depois abeirei-me do Carlos e perguntei-lhe quando é que voltávamos ao trabalho.
O Carlos levou-me à sala da Direcção da Associação e, de uma gaveta, retirou um molho de panfletos variados que me entregou; jornais como “Servir o Povo” (UEC(m-l)), “Unidade Popular” (CM-LP), textos da EDE, outros do MRPP, colectâneas como “África Livre”, “Cadernos Necessários”, etc. Ou seja, um conjunto extremamente ecléctico que me permitia um primeiro conhecimento da vida política clandestina no país e que não comprometia o Carlos.
Como a mistura dos textos me confundia, dividi a papelada por organizações e iniciei meticulosamente o seu estudo. Comecei pelo “Servir o Povo” e pelo “Unidade Popular” e, como tudo o que lá vinha me parecesse conforme com os livros que recentemente lera, e como se atacava o revisionismo do PCP, não achei nada de mau nos textos. Foi o que disse ao Carlos num encontro posterior em sua casa. O Fred também já deixara de comparecer.
O Carlos no entanto não partilhou a minha apreciação positiva dos papéis e apontou-me a seguinte fraqueza neles: não havia lá nenhuma análise concreta da vida portuguesa. Tudo se resumia a citações dos “clássicos” (a plêiade de profetas constituída por Marx, Engels, Lenine, Estaline e Mao), proclamações e palavreado. Cego na minha confiança nele, na sua sabedoria e consciência política, identifiquei-me imediatamente com a sua opinião. E depois, reflectindo, considerei que se verificara ali a desobediência ao que Mao indicava nas suas obras: a necessidade de análise concreta, de “inquérito” e de investigação, de combate ao dogmatismo e ao culto do livro. Coisa que também sublinhara Lenine: “a essência do marxismo é a análise concreta da realidade concreta”.
Seguidamente estudei a papelada da EDE e do MRPP e achei que o esforço teórico ali realizado já satisfazia a necessidade de análises concretas, nomeadamente no “Bandeira Vermelha”. Por isso disse ao Carlos, no fim do estudo, a minha opinião positiva. Mais uma vez ele não partilhou da minha opinião e apontou-me algumas contradições dos textos, que não compreendi bem. No entanto de novo a confiança ilimitada no experiente Carlos me levou a identificar cegamente com o seu desagrado pelo MRPP.
E assim de um modo geral sucedeu com os outros textos e organizações.Por fim o Carlos emprestou-me um volumoso jornal de 70 páginas, o “Viva o Comunismo!” n.º 2/3, órgão teórico dos CCRM-L e, como a este jornal não fez qualquer crítica, concluí que era ele o da sua simpatia e por isso, e também porque a riqueza cultural das análises satisfazia a minha curiosidade acerca da política nacional, e ainda porque a apreciação dos intentos liberalizantes e reformistas do marcelismo encaixava com o que diziam Mariano Gago e Vieira Lopes acerca da Reforma do ensino de Veiga Simão, por tudo isso os CCRM-L se tornaram da minha simpatia, como se fossem um clube de futebol...
As franjas da Organização
Ora o “Viva o Comunismo!” dos CCRM-L considerava que o Partido Comunista Português fora sempre um Partido revisionista, veiculando a ideologia liberal no seio do operariado, não passando assim de um agente da burguesia, e que isso resultava cientificamente de causas infraestruturais, a saber a fraca industrialização do país e a resultante dispersão do seu operariado. O desenvolvimento económico acabara, porém, por produzir concentrações operárias que haviam criado a possibilidade objectiva de uma consciência comunista nos anos 60, quando ocorrera a cisão maoísta no PCP, mas só agora com o marcelismo e a sua recuperação prática do próprio reformismo do PCP é que estavam também criadas as condições subjectivas para a tomada de consciência comunista pelo proletariado. A análise parecia-me uma aplicação magistral do marxismo!
Como entretanto no “Que faire?” eu aprendera a impossibilidade de a ideologia comunista ser espontaneamente produzida pelo Movimento Operário, acreditei piamente no carácter burguês que sempre tivera e continuava a ter o Movimento Operário português e, juntamente com o mal-escondido desprezo do Vieira Lopes pelas lutas operárias conduzidas pelos revisionistas, assimilei idêntica atitude pelas lutas operárias existentes, e pela sua História passada. Só os CCRM-L é que, surgidos no exacto momento em que estavam criadas as condições históricas para que o operariado português finalmente adquirisse uma consciência comunista revolucionária, só eles é que representavam o verdadeiro começo do movimento comunista proletário em Portugal!
Estas ideias eram, no entanto, uma amálgama confusa na minha mente quando, sob a condução do João Vieira Lopes , comecei a trabalhar fora da Associação e da Universidade.
O trabalho político que desembocou no meu recrutamento para os CCRM-L, no fim de Setembro desse ano de 1971, desenvolveu-se em dois níveis organizativos: por um lado, reuniões com vários outros estudantes e o João, de carácter ilegal, reuniões de debate ideológico e que se iriam pouco a pouco tornando mais esparsas até ao seu desaparecimento. Por outro lado uma ligação pessoal ao João, onde se faria a minha aprendizagem de regras de clandestinidade, se discutiria o meu esforço de ligação ao meio operário e onde se aprofundaria a discussão das linhas políticas das diversas organizações.
Como entretanto no “Que faire?” eu aprendera a impossibilidade de a ideologia comunista ser espontaneamente produzida pelo Movimento Operário, acreditei piamente no carácter burguês que sempre tivera e continuava a ter o Movimento Operário português e, juntamente com o mal-escondido desprezo do Vieira Lopes pelas lutas operárias conduzidas pelos revisionistas, assimilei idêntica atitude pelas lutas operárias existentes, e pela sua História passada. Só os CCRM-L é que, surgidos no exacto momento em que estavam criadas as condições históricas para que o operariado português finalmente adquirisse uma consciência comunista revolucionária, só eles é que representavam o verdadeiro começo do movimento comunista proletário em Portugal!
Estas ideias eram, no entanto, uma amálgama confusa na minha mente quando, sob a condução do João Vieira Lopes , comecei a trabalhar fora da Associação e da Universidade.
O trabalho político que desembocou no meu recrutamento para os CCRM-L, no fim de Setembro desse ano de 1971, desenvolveu-se em dois níveis organizativos: por um lado, reuniões com vários outros estudantes e o João, de carácter ilegal, reuniões de debate ideológico e que se iriam pouco a pouco tornando mais esparsas até ao seu desaparecimento. Por outro lado uma ligação pessoal ao João, onde se faria a minha aprendizagem de regras de clandestinidade, se discutiria o meu esforço de ligação ao meio operário e onde se aprofundaria a discussão das linhas políticas das diversas organizações.
quarta-feira, julho 05, 2006
A implantação na classe operária
Ora a Standard Electric do Filipe era uma fábrica que construía rádios e dependia da ITT, o que a tornava muito conhecida. Tinha duas secções: uma em Lisboa, com centenas de trabalhadores, e outra em S. Gabriel de Cascais, com alguns milhares.
Além de uma secção de escritórios, em que o PCP possuía implantação, e da administração, a fábrica de Lisboa distribuía os seus operários por várias secções, o que tornava o convívio entre eles quase impossível e impedia que os operários se conseguissem unir ou sequer contactar.
Existia na fábrica uma disciplina rigorosa. Demasiado tempo no W.C. podia significar uma suspensão de trabalho, tal como um ligeiro atraso na chegada ao emprego. A cantina era usada para almoço a horas diferentes para cada secção, o que mais dificultava os contactos. E durante o trabalho os chefes controlavam com rispidez o esforço e a eficiência dos trabalhadores.
O trabalho mais pesado e monótono era o das mulheres. Formavam as cadeias de montagem donde saíam os aparelhos que depois eram testados pelos operários qualificados como o Filipe. Ganhavam uma média de mil escudos por mês, embora os operários especializados ganhassem cerca de cinco mil, e os ritmos de trabalho eram de uma intensidade tremenda. Como termo de comparação, a minha mesada era então de três mil escudos e dava à justa para viver.
Seguindo a minha orientação e a do Vieira Lopes , o Filipe começou a sondar os colegas. As operárias mais numerosas e desqualificadas sentiam-se brutalmente humilhadas na forma como eram tratadas e eram receptivas a acções colectivas de reivindicação, mas não mostravam qualquer interesse por discussões e leituras políticas fora dos seus problemas concretos e imediatos. Os operários qualificados como o próprio Filipe, e com os quais este acamaradava mais, eram de certo modo uma elite na fábrica e, embora mostrassem combatividade e sensibilidade quanto a problemas concretos, também não mostravam interesse por discussões nem leituras políticas. Só um operário se viria a mostrar receptivo a esse tipo de conversas, mas um dia descobrimos que ele estava ligado ao PCP: tentou fazer circular na fábrica um abaixo-assinado reivindicativo, foi ameaçado por um chefe, assustou-se e fechou-se ao Filipe.
As operárias adolescentes, e que eram a maioria, sonhavam era com um casamento que lhes desse uma nova vida, enquanto as mais velhas, já casadas e com filhos, que sabiam como o casamento apenas representava um redobrado encargo, eram mais decididas e lutadoras, mas muito dependentes das decisões dos maridos que evidentemente as desencorajavam de se envolverem em quaisquer ligações pessoais, mesmo políticas. Por Dezembro, após poucos meses de esforços, este trabalho de corredor do Filipe saldara-se pelo impasse.
No entanto, a receptividade destes trabalhadores para a luta colectiva por objectivos imediatos era extraordinária: mais de uma vez a injusta suspensão de um colega levara a uma espontânea paralisação do trabalho, e aumentos anuais de salário injustamente repartidos haviam levado a idêntica atitude por parte dos operários especializados. Se a nossa preocupação fosse orientada para a acção colectiva as condições eram óptimas mas, como apenas procurávamos contactos a doutrinar fora da acção reivindicativa, o trabalho não progredia.
Com o Rui passou-se basicamente a mesma coisa.
Depois de se empregar na Jonhson & Jonhson foi colocado a trabalhar por turnos numa máquina. Os seus camaradas, jovens como ele, eram brincalhões, indisciplinados, e quase todos tinham cadastro, pois à rufiagem própria da idade somavam o desemprego frequente por ainda não terem feito a tropa, e daí os roubos. Era difícil conseguir deles uma luta firme e conscienciosa e tinham pouca disciplina e alguns hábitos de marginais, pois como eram solteiros e ainda não tinham família a sustentar a vida era-lhes suportável.
Todavia, o trabalho de embalagem era feito por mulheres, menos jovens e ingénuas que as da Standard Electric e muito unidas e combativas. Sem conseguir suster a sua própria impetuosidade, o Rui começou a agitar o pessoal da fábrica e depressa essas operárias o procuraram para que ele lhes ensinasse como reivindicar, tal como sucedera ao Filipe na Standard. Mas eu e o João fizemos todos os esforços para o impedir de se envolver nessas acções colectivas para que era solicitado, procurando canalizá-lo para simples contactos discretos e de mentalização pessoal que conduzissem alguns operários até nós, com vista à tal luta contra o atraso ideológico. Isso, porém, não deu quaisquer frutos e, em Dezembro, o Rui, frustrado, alinhou numa acção de destruição espontânea de material da fábrica com os seus jovens camaradas e foram todos despedidos.
Além de uma secção de escritórios, em que o PCP possuía implantação, e da administração, a fábrica de Lisboa distribuía os seus operários por várias secções, o que tornava o convívio entre eles quase impossível e impedia que os operários se conseguissem unir ou sequer contactar.
Existia na fábrica uma disciplina rigorosa. Demasiado tempo no W.C. podia significar uma suspensão de trabalho, tal como um ligeiro atraso na chegada ao emprego. A cantina era usada para almoço a horas diferentes para cada secção, o que mais dificultava os contactos. E durante o trabalho os chefes controlavam com rispidez o esforço e a eficiência dos trabalhadores.
O trabalho mais pesado e monótono era o das mulheres. Formavam as cadeias de montagem donde saíam os aparelhos que depois eram testados pelos operários qualificados como o Filipe. Ganhavam uma média de mil escudos por mês, embora os operários especializados ganhassem cerca de cinco mil, e os ritmos de trabalho eram de uma intensidade tremenda. Como termo de comparação, a minha mesada era então de três mil escudos e dava à justa para viver.
Seguindo a minha orientação e a do Vieira Lopes , o Filipe começou a sondar os colegas. As operárias mais numerosas e desqualificadas sentiam-se brutalmente humilhadas na forma como eram tratadas e eram receptivas a acções colectivas de reivindicação, mas não mostravam qualquer interesse por discussões e leituras políticas fora dos seus problemas concretos e imediatos. Os operários qualificados como o próprio Filipe, e com os quais este acamaradava mais, eram de certo modo uma elite na fábrica e, embora mostrassem combatividade e sensibilidade quanto a problemas concretos, também não mostravam interesse por discussões nem leituras políticas. Só um operário se viria a mostrar receptivo a esse tipo de conversas, mas um dia descobrimos que ele estava ligado ao PCP: tentou fazer circular na fábrica um abaixo-assinado reivindicativo, foi ameaçado por um chefe, assustou-se e fechou-se ao Filipe.
As operárias adolescentes, e que eram a maioria, sonhavam era com um casamento que lhes desse uma nova vida, enquanto as mais velhas, já casadas e com filhos, que sabiam como o casamento apenas representava um redobrado encargo, eram mais decididas e lutadoras, mas muito dependentes das decisões dos maridos que evidentemente as desencorajavam de se envolverem em quaisquer ligações pessoais, mesmo políticas. Por Dezembro, após poucos meses de esforços, este trabalho de corredor do Filipe saldara-se pelo impasse.
No entanto, a receptividade destes trabalhadores para a luta colectiva por objectivos imediatos era extraordinária: mais de uma vez a injusta suspensão de um colega levara a uma espontânea paralisação do trabalho, e aumentos anuais de salário injustamente repartidos haviam levado a idêntica atitude por parte dos operários especializados. Se a nossa preocupação fosse orientada para a acção colectiva as condições eram óptimas mas, como apenas procurávamos contactos a doutrinar fora da acção reivindicativa, o trabalho não progredia.
Com o Rui passou-se basicamente a mesma coisa.
Depois de se empregar na Jonhson & Jonhson foi colocado a trabalhar por turnos numa máquina. Os seus camaradas, jovens como ele, eram brincalhões, indisciplinados, e quase todos tinham cadastro, pois à rufiagem própria da idade somavam o desemprego frequente por ainda não terem feito a tropa, e daí os roubos. Era difícil conseguir deles uma luta firme e conscienciosa e tinham pouca disciplina e alguns hábitos de marginais, pois como eram solteiros e ainda não tinham família a sustentar a vida era-lhes suportável.
Todavia, o trabalho de embalagem era feito por mulheres, menos jovens e ingénuas que as da Standard Electric e muito unidas e combativas. Sem conseguir suster a sua própria impetuosidade, o Rui começou a agitar o pessoal da fábrica e depressa essas operárias o procuraram para que ele lhes ensinasse como reivindicar, tal como sucedera ao Filipe na Standard. Mas eu e o João fizemos todos os esforços para o impedir de se envolver nessas acções colectivas para que era solicitado, procurando canalizá-lo para simples contactos discretos e de mentalização pessoal que conduzissem alguns operários até nós, com vista à tal luta contra o atraso ideológico. Isso, porém, não deu quaisquer frutos e, em Dezembro, o Rui, frustrado, alinhou numa acção de destruição espontânea de material da fábrica com os seus jovens camaradas e foram todos despedidos.
O comité "Luta Popular"
O João Vieira Lopes apresentara-se-me como membro dos CCRM-L no dia 30 de Setembro, no meu quarto da casa de Queluz. Avisou-me com gravidade que se fossemos presos possivelmente a PIDE nos reservaria penas de prisão bastantes longas e convidou-me a ingressar, o que me deixou muitíssimo emocionado e orgulhoso por ter merecido tal honra.
O Comité “Luta Popular” a cuja estrutura passei a pertencer era constituído pelo Vieira Lopes , que tinha o pseudónimo de “AlFredo”, pelo Carlos António, que tinha o de “Aurélio”, e por mim, que fiquei provisoriamente com o de “Aníbal”, que escolhi de modo a sermos o Comité dos “ases”. Estava entretanto explicado por que razão quando o Carlos deixara de se reunir comigo, na Primavera anterior, tinha aparecido o Vieira Lopes a substituí-lo. Estavam combinados, nas sombras da clandestinidade!
No Comité tínhamos os três iguais direitos e deveres e as decisões eram tomadas por maioria, embora o trabalho de implantação operária fosse em separado: eu e o João por um lado, o Carlos por outro. O controlo sobre o Comité era exercido do estrangeiro, por um membro do Secretariado do Comité de Coordenação e Redacção, de pseudónimo “Miguel”, e que pouco depois Vieira Lopes me diria ser o próprio secretário-geral, João Bernardo “Tiago”, o fundador dos CCRM-L.
Como a prioridade da Organização era a luta contra o atraso ideológico, a qual fora definida ainda antes da criação dos CCRM-L em 1969, nas famosas “Cartas” com que João Bernardo “Tiago” cindira, em Paris, do CM-LP de Eduíno Gomes “Vilar”, procurei logo de entrada levar a cabo com disciplina e método as directrizes da Direcção sobre o estudo do material por ela editado.
O Comité “Luta Popular” possuía dois cacifos no Pavilhão Central do “Técnico”, alugados sob falsos números, e de cujos respectivos cadeados adquiri cópias das chaves. Deparei logo de início com o caos organizativo nos cacifos! Montanhas de folhas impressas do “Viva o Comunismo!” e sem arrumação misturavam-se com circulares internas, inúmeros panfletos de outras organizações e cópias de relatórios, tudo em grande confusão. Levou algum tempo a que o Carlos decidisse dar a isto um mínimo de disciplina que me permitisse começar a estudar as circulares de que faltavam alguns números, e certas zonas dos cacifos estavam-me interditas devido a terem cópias dos relatórios anteriores do Comité.
A maioria das primeiras circulares, emitidas em 1970, eram de análise e crítica de números do “Avante”, do “Servir o Povo” e da “Unidade Popular”, e portanto deviam obviamente ser acompanhadas da leitura dessa mesma imprensa conforme, aliás, era ordenado nas próprias circulares. Sucedera no entanto que o Comité perdera essas publicações e por isso simplesmente não existiam. Até ao Natal de 71, contudo, estudei-as o melhor que pude, bem como todos os números do “Viva o Comunismo!”, reforçando com isso a formação doutrinária que vinha a adquirir.
Escusado será realçar as precauções com que este estudo era feito. Temia sempre ser observado a abrir e a fechar os cacifos, ou a ler as circulares, e por isso procurava entrar no anexo onde estavam os cacifos sem ser visto quer pelos contínuos, sempre suspeitos de serem informadores da PIDE, quer por estudantes desconhecidos, e nunca lhes mexia quando algum estudante ou a empregada da limpeza estivessem a observar, para que não soubessem quais eram os meus. Retirava e colocava o material sempre com o coração na boca e a toda a pressa, e estas operações provocavam-me uma tal tensão que procurava reduzir o seu número o mais possível. Normalmente tirava do cacifo a pasta onde estavam as circulares que procurava e metia-a numa pasta maior minha; ia ao W.C., fechava-me lá a retirar o material que queria, e voltava à sala dos cacifos para voltar a guardar a pasta. Assim reduzia a selecção do material a uma operação de abrir e fechar o cacifo muito rápida. Acima de tudo eu temia que a PIDE suspeitasse dos cacifos e tentasse localizar os dos tipos suspeitos como eu. Se havia nisto a devida prudência era ao João Vieira Lopes que o devia, na medida em que era ele o meu educador conspirativo.
A leitura, feita de preferência no interior do Instituto, em princípio mais resguardado da PIDE, tinha de a fazer sempre tenso de receio e de frio, nos jardins da escola…
O Comité “Luta Popular” a cuja estrutura passei a pertencer era constituído pelo Vieira Lopes , que tinha o pseudónimo de “AlFredo”, pelo Carlos António, que tinha o de “Aurélio”, e por mim, que fiquei provisoriamente com o de “Aníbal”, que escolhi de modo a sermos o Comité dos “ases”. Estava entretanto explicado por que razão quando o Carlos deixara de se reunir comigo, na Primavera anterior, tinha aparecido o Vieira Lopes a substituí-lo. Estavam combinados, nas sombras da clandestinidade!
No Comité tínhamos os três iguais direitos e deveres e as decisões eram tomadas por maioria, embora o trabalho de implantação operária fosse em separado: eu e o João por um lado, o Carlos por outro. O controlo sobre o Comité era exercido do estrangeiro, por um membro do Secretariado do Comité de Coordenação e Redacção, de pseudónimo “Miguel”, e que pouco depois Vieira Lopes me diria ser o próprio secretário-geral, João Bernardo “Tiago”, o fundador dos CCRM-L.
Como a prioridade da Organização era a luta contra o atraso ideológico, a qual fora definida ainda antes da criação dos CCRM-L em 1969, nas famosas “Cartas” com que João Bernardo “Tiago” cindira, em Paris, do CM-LP de Eduíno Gomes “Vilar”, procurei logo de entrada levar a cabo com disciplina e método as directrizes da Direcção sobre o estudo do material por ela editado.
O Comité “Luta Popular” possuía dois cacifos no Pavilhão Central do “Técnico”, alugados sob falsos números, e de cujos respectivos cadeados adquiri cópias das chaves. Deparei logo de início com o caos organizativo nos cacifos! Montanhas de folhas impressas do “Viva o Comunismo!” e sem arrumação misturavam-se com circulares internas, inúmeros panfletos de outras organizações e cópias de relatórios, tudo em grande confusão. Levou algum tempo a que o Carlos decidisse dar a isto um mínimo de disciplina que me permitisse começar a estudar as circulares de que faltavam alguns números, e certas zonas dos cacifos estavam-me interditas devido a terem cópias dos relatórios anteriores do Comité.
A maioria das primeiras circulares, emitidas em 1970, eram de análise e crítica de números do “Avante”, do “Servir o Povo” e da “Unidade Popular”, e portanto deviam obviamente ser acompanhadas da leitura dessa mesma imprensa conforme, aliás, era ordenado nas próprias circulares. Sucedera no entanto que o Comité perdera essas publicações e por isso simplesmente não existiam. Até ao Natal de 71, contudo, estudei-as o melhor que pude, bem como todos os números do “Viva o Comunismo!”, reforçando com isso a formação doutrinária que vinha a adquirir.
Escusado será realçar as precauções com que este estudo era feito. Temia sempre ser observado a abrir e a fechar os cacifos, ou a ler as circulares, e por isso procurava entrar no anexo onde estavam os cacifos sem ser visto quer pelos contínuos, sempre suspeitos de serem informadores da PIDE, quer por estudantes desconhecidos, e nunca lhes mexia quando algum estudante ou a empregada da limpeza estivessem a observar, para que não soubessem quais eram os meus. Retirava e colocava o material sempre com o coração na boca e a toda a pressa, e estas operações provocavam-me uma tal tensão que procurava reduzir o seu número o mais possível. Normalmente tirava do cacifo a pasta onde estavam as circulares que procurava e metia-a numa pasta maior minha; ia ao W.C., fechava-me lá a retirar o material que queria, e voltava à sala dos cacifos para voltar a guardar a pasta. Assim reduzia a selecção do material a uma operação de abrir e fechar o cacifo muito rápida. Acima de tudo eu temia que a PIDE suspeitasse dos cacifos e tentasse localizar os dos tipos suspeitos como eu. Se havia nisto a devida prudência era ao João Vieira Lopes que o devia, na medida em que era ele o meu educador conspirativo.
A leitura, feita de preferência no interior do Instituto, em princípio mais resguardado da PIDE, tinha de a fazer sempre tenso de receio e de frio, nos jardins da escola…
A intervenção no movimento estudantil
Este círculo de admiradores começou a desenvolver-me o gosto pelas citações livrescas, o espírito inquisidor relativamente aos “desvios” doutrinários dos outros e o prazer de me sentir adulado pelos mais novos e respeitado pelos elementos dos outros grupos.
Convivia também bastante com associativos temperados, como o Alcobia, o Fernando B., o Brandão, o Felisberto e o João Elviro, tendo adquirido o hábito das ceias de conversa nas cervejarias próximas do Técnico, os “Moinhos” e a “Portugália”, até às tantas da noite e começando a engordar a olhos vistos. Nestas cavaqueiras descambávamos frequentemente no ultra-esquerdismo, atacando como “burguesas” todas as acções de massas de que havia notícias e todo o desejo de servir o povo a que chamávamos sobranceiramente de “obreirismo”. Criticávamos a arte popular, desprezando os baladeiros e em particular Zeca Afonso, a “Amália Rodrigues dos revisas”, e em geral todos os sentimentos, quer de amor ao povo quer de ódio à burguesia, invocando o “anti-espontaneísmo” e o “carácter científico do comunismo”, e rotulando de “liberalismo” a evocação de quaisquer aspectos da vida pessoal de cada um. Este ultra-esquerdismo levar-me-ia mesmo a criticar um romance Vietkong entretanto editado, por glorificar uma história de amor entre uma guerrilheira do Sul e um soldado do Vietname do Norte, o que se me afigurava contemporizar com a noção burguesa de casamento e portanto denotar revisionismo, e foi o Fred quem me fez ver que esse amor exprimia simbolicamente a união Norte-Sul no Vietname e a causa da reunificação por que o seu povo lutava...
Foi mais ou menos nessa altura, também, que ofereci as minhas colecções de discos dos Rolling Stones a uma prima da margem Sul do Tejo, dado que via agora aquela música como degeneradamente burguesa. Toda a música, aliás...
Com esta vida de militante estudantil, estava cada vez mais vaidoso dos meus conhecimentos livrescos e da capacidade retórica dos CCR que assimilara, sem notar que desaparecera em mim o interesse pelos pobres que me tinha levado às franjas dos CCRM-L um ano antes. A própria coesão sectária de grupo se esfumava, transformada em cínicos laços friamente encarados, em nome do “anti-liberalismo”. Ao mesmo tempo, porém, coibia-me de procurar o amor de alguma rapariga, apesar das carências sexuais que me atormentavam. Somava assim às frustrações do ascetismo a cedência aos prazeres da mesa e da conversa de café, assemelhando-nos de certo modo, eu e o Carlos, a clérigos pecadores.
Dez meses depois do meu recrutamento pela Organização eu transformara-me radicalmente, dominado pelos vícios da luta de seitas e pela vaidade dos bastidores estudantis. A degradação política em que caíra só se me tornaria no entanto consciente quando o primeiro ataque da repressão atingisse os CCR e estes fossem mostrar a sua nudez, perante os rigores das salas de tortura.
Convivia também bastante com associativos temperados, como o Alcobia, o Fernando B., o Brandão, o Felisberto e o João Elviro, tendo adquirido o hábito das ceias de conversa nas cervejarias próximas do Técnico, os “Moinhos” e a “Portugália”, até às tantas da noite e começando a engordar a olhos vistos. Nestas cavaqueiras descambávamos frequentemente no ultra-esquerdismo, atacando como “burguesas” todas as acções de massas de que havia notícias e todo o desejo de servir o povo a que chamávamos sobranceiramente de “obreirismo”. Criticávamos a arte popular, desprezando os baladeiros e em particular Zeca Afonso, a “Amália Rodrigues dos revisas”, e em geral todos os sentimentos, quer de amor ao povo quer de ódio à burguesia, invocando o “anti-espontaneísmo” e o “carácter científico do comunismo”, e rotulando de “liberalismo” a evocação de quaisquer aspectos da vida pessoal de cada um. Este ultra-esquerdismo levar-me-ia mesmo a criticar um romance Vietkong entretanto editado, por glorificar uma história de amor entre uma guerrilheira do Sul e um soldado do Vietname do Norte, o que se me afigurava contemporizar com a noção burguesa de casamento e portanto denotar revisionismo, e foi o Fred quem me fez ver que esse amor exprimia simbolicamente a união Norte-Sul no Vietname e a causa da reunificação por que o seu povo lutava...
Foi mais ou menos nessa altura, também, que ofereci as minhas colecções de discos dos Rolling Stones a uma prima da margem Sul do Tejo, dado que via agora aquela música como degeneradamente burguesa. Toda a música, aliás...
Com esta vida de militante estudantil, estava cada vez mais vaidoso dos meus conhecimentos livrescos e da capacidade retórica dos CCR que assimilara, sem notar que desaparecera em mim o interesse pelos pobres que me tinha levado às franjas dos CCRM-L um ano antes. A própria coesão sectária de grupo se esfumava, transformada em cínicos laços friamente encarados, em nome do “anti-liberalismo”. Ao mesmo tempo, porém, coibia-me de procurar o amor de alguma rapariga, apesar das carências sexuais que me atormentavam. Somava assim às frustrações do ascetismo a cedência aos prazeres da mesa e da conversa de café, assemelhando-nos de certo modo, eu e o Carlos, a clérigos pecadores.
Dez meses depois do meu recrutamento pela Organização eu transformara-me radicalmente, dominado pelos vícios da luta de seitas e pela vaidade dos bastidores estudantis. A degradação política em que caíra só se me tornaria no entanto consciente quando o primeiro ataque da repressão atingisse os CCR e estes fossem mostrar a sua nudez, perante os rigores das salas de tortura.
As prisões de Agosto e Setembro de 1972
No dia seguinte ao da partida para França do João Vieira Lopes e da sua namorada, a 9 de Agosto de 1972, houve uma vaga de prisões da PIDE que levou algumas dezenas de antifascistas. Entre estes, dois tinham sido membros da Direcção de Vieira Lopes na Associação do “Técnico” em 1970/71, os engenheiros químicos Rui Henriques e Fernando B..
Rui Henriques vivia com a mulher Margie e o irmão advogado Duarte, e ainda um amigo, Miranda. Segundo constou, a PIDE bateu-lhes à porta de manhã cedo e, como eles a não abrissem, procurando ganhar o tempo suficiente para que a Margie destruísse os panfletos existentes na casa, a PIDE meteu um pé de cabra à porta e arrombou-a. Rui Henriques deu um murro num olho dum agente, um pontapé no baixo ventre de outro, e enquanto os restantes o espancavam brutalmente enchendo a casa de sangue, ainda deu um pontapé no pescoço dum dos agentes. Todos os residentes foram presos para Caxias.
Fernando B. foi preso a meio do banho, em casa, sem resistência.
A princípio, como eu desconhecia a envergadura dos CCR, a quantidade de prisões não me impressionou muito. Apenas dias depois o Carlos, sem me dizer porquê e continuando a levar uma vida quase normal, me avisou de que corria também o risco de ser preso.
Nos primeiros dias de Setembro, ao entrar na Associação, fui surpreendido com um cartaz que anunciava a prisão do Carlos. Ao entrar em casa, onde não dormira essa noite, encontrara a irmã sequestrada por vários agentes da PIDE que o esperavam no interior. Mais tarde a irmã, a Guida, dir-me-ia que entre o exílio e a prisão ele optara por esta última.
Calculei que eu também entrara em perigo mas só quando, a 15 de Setembro, foi preso à saída de casa o Joaquim Manuel e se intensificou nitidamente a presença da PIDE à minha volta, observando as minhas possíveis reacções à prisão de amigos, é que “entrei de prevenção” passando à semi-clandestinidade. Na verdade tal incremento da vigilância devia resultar de já ter sido denunciado pelo Joaquim Manuel, mas isso era coisa que não me passava pela cabeça…!
Rui Henriques vivia com a mulher Margie e o irmão advogado Duarte, e ainda um amigo, Miranda. Segundo constou, a PIDE bateu-lhes à porta de manhã cedo e, como eles a não abrissem, procurando ganhar o tempo suficiente para que a Margie destruísse os panfletos existentes na casa, a PIDE meteu um pé de cabra à porta e arrombou-a. Rui Henriques deu um murro num olho dum agente, um pontapé no baixo ventre de outro, e enquanto os restantes o espancavam brutalmente enchendo a casa de sangue, ainda deu um pontapé no pescoço dum dos agentes. Todos os residentes foram presos para Caxias.
Fernando B. foi preso a meio do banho, em casa, sem resistência.
A princípio, como eu desconhecia a envergadura dos CCR, a quantidade de prisões não me impressionou muito. Apenas dias depois o Carlos, sem me dizer porquê e continuando a levar uma vida quase normal, me avisou de que corria também o risco de ser preso.
Nos primeiros dias de Setembro, ao entrar na Associação, fui surpreendido com um cartaz que anunciava a prisão do Carlos. Ao entrar em casa, onde não dormira essa noite, encontrara a irmã sequestrada por vários agentes da PIDE que o esperavam no interior. Mais tarde a irmã, a Guida, dir-me-ia que entre o exílio e a prisão ele optara por esta última.
Calculei que eu também entrara em perigo mas só quando, a 15 de Setembro, foi preso à saída de casa o Joaquim Manuel e se intensificou nitidamente a presença da PIDE à minha volta, observando as minhas possíveis reacções à prisão de amigos, é que “entrei de prevenção” passando à semi-clandestinidade. Na verdade tal incremento da vigilância devia resultar de já ter sido denunciado pelo Joaquim Manuel, mas isso era coisa que não me passava pela cabeça…!
O comité "Luta Operária Consciente"
Entretanto, como baptismo do novo comité e de certo modo como resposta às prisões com que a PIDE estava a ferir os CCRM-L, em fins de Agosto procedemos a um espalhamento de panfletos na Venda Nova. E, de madrugada, com o céu de Agosto limpo e já dia às 6 horas da manhã, antes da hora de entrada dos trabalhadores espalhámos cem tarjetas em dois locais-chave de passagem obrigatória de quem fosse para as fábricas: na estação de comboios da Damaia e numa paragem de autocarros na estrada de Benfica. Enquanto um de nós vigiava os acessos do local, prevenindo qualquer aproximação da PIDE ou da PSP, o outro fazia o espalhamento. Só fui eu e o Rui porque constatáramos, num ensaio, que o irmos os três dificultava mais a operação do que indo só dois, pois a coordenação era difícil.
A tarjeta, mais uma vez, era a única de que possuíamos um stoque: a que continha um comunicado do PAIGC na frente e outro dos CCR no verso, apelando à deserção e à solidariedade com os povos africanos em luta contra o colonialismo.
O centro recreativo Rangel era um local de convívio operário onde geralmente não se fazia mais do que passar o tempo no jogo: cartas, dominó, etc. Havia uma velha biblioteca semi-abandonada que o Rui pôs em ordem, e depressa decidimos organizar a publicação de um boletim cultural, com vista à aglutinação dos operários mais interessados culturalmente e sensíveis a essa “dinamização”. A impressão do boletim foi feita, sob empréstimo, num copiógrafo da empresa Icosal. Editaram-se dois números do boletim, tendo um deles incluído um artigo informativo sobre a guerra do Vietname e a sua história, que compus com base em livros e dados de memória, tirando no final a conclusão da invencibilidade da guerra verdadeiramente popular. Isto valeu ao Rui o conselho da Direcção do centro para abandonar a “política” naquelas tarefas, pois era-lhes evidente que o Rui fora teleguiado naquela edição. Por outro lado, esta “politização” cultural não só não atraiu quaisquer novos operários, como chamou antes a atenção de notórios bufos e legionários que passaram a concentrar a sua atenção no Rui. O único efeito positivo deste trabalho foi o conhecimento de novos operários trabalhando na Venda Nova, que lhe arranjaram emprego numa fábrica de vidros da zona, a Sotancro. E assim, em Outubro, o Rui obtivera finalmente a desejada colocação na Venda Nova. Quanto ao Filipe, que inicialmente tínhamos pensado também poder desenvolver um trabalho útil no Rangel, filiou-se lá como sócio mas acabou por nunca o chegar a frequentar, dado o caminho que as coisas levaram quando se nos tornou evidente que o Centro era controlado pelo regime.
A tarjeta, mais uma vez, era a única de que possuíamos um stoque: a que continha um comunicado do PAIGC na frente e outro dos CCR no verso, apelando à deserção e à solidariedade com os povos africanos em luta contra o colonialismo.
O centro recreativo Rangel era um local de convívio operário onde geralmente não se fazia mais do que passar o tempo no jogo: cartas, dominó, etc. Havia uma velha biblioteca semi-abandonada que o Rui pôs em ordem, e depressa decidimos organizar a publicação de um boletim cultural, com vista à aglutinação dos operários mais interessados culturalmente e sensíveis a essa “dinamização”. A impressão do boletim foi feita, sob empréstimo, num copiógrafo da empresa Icosal. Editaram-se dois números do boletim, tendo um deles incluído um artigo informativo sobre a guerra do Vietname e a sua história, que compus com base em livros e dados de memória, tirando no final a conclusão da invencibilidade da guerra verdadeiramente popular. Isto valeu ao Rui o conselho da Direcção do centro para abandonar a “política” naquelas tarefas, pois era-lhes evidente que o Rui fora teleguiado naquela edição. Por outro lado, esta “politização” cultural não só não atraiu quaisquer novos operários, como chamou antes a atenção de notórios bufos e legionários que passaram a concentrar a sua atenção no Rui. O único efeito positivo deste trabalho foi o conhecimento de novos operários trabalhando na Venda Nova, que lhe arranjaram emprego numa fábrica de vidros da zona, a Sotancro. E assim, em Outubro, o Rui obtivera finalmente a desejada colocação na Venda Nova. Quanto ao Filipe, que inicialmente tínhamos pensado também poder desenvolver um trabalho útil no Rangel, filiou-se lá como sócio mas acabou por nunca o chegar a frequentar, dado o caminho que as coisas levaram quando se nos tornou evidente que o Centro era controlado pelo regime.
O desânimo por todos os fracassos
A primeira constatação que lamentavelmente tinha de fazer é que a Organização não funcionava, de facto.
Em quinze meses de militância recebera um único relatório de controlo, mas nem mesmo nesse houvera qualquer orientação para os problemas práticos que nos iam surgindo. O meu relatório do Natal de 1971 tinha ficado sem qualquer resposta meses a fio, sem a mínima orientação prática. O problema do papel a atribuir à nossa intervenção estudantil e outros problemas organizativos, eram totalmente ignorados. O “Viva o Comunismo!” n.º 6, cuja impressão não fora atribuída ao nosso Comité, ainda não surgira em público apesar dos longos meses decorridos desde a sua redacção (lera o original em Abril e já estávamos em Dezembro). Nenhuma imprensa de agitação era editada pela Organização, continuávamos a dispor apenas da velha e sempre a mesma tarjeta anti-colonial, e entretanto todas as outras organizações se expandiam, causando-me a sensação de que todas iam ultrapassando os CCRM-L a que eu aderira em 1971, os CCRM-L pioneiros da construção do Partido pela saída da Universidade e pela ligação ao operariado.
Ainda no Comité “Luta Popular”, viera-se-me acentuando o desgosto e a ansiedade para com o abandono a que sentia votado o meu trabalho operário e a acção política do Comité, desgosto e ansiedade que Vieira Lopes conhecia perfeitamente e de cuja expressão, em forma de crítica verbal, era portador quando partiu para França, em Agosto de 1972. A nossa suspeita, comum a todos os membros do Comité, era que a Direcção se deixava mergulhar no estudo livresco e ignorava completamente o trabalho prático dos militantes no interior, em particular desleixando o estabelecimento de um sistema de correios que permitisse uma orientação mais efectiva e a troca de informações. Ao mesmo tempo, o artigo sobre a guerra do Vietname no “Viva o Comunismo!” n.º 5, e as elucubrações sobre a “pequena burguesia dos serviços” no “Viva o Comunismo!” n.º 6, davam-nos a impressão de que a Direcção andava muito distraída da vida. A existência de directivas, orientações e esclarecimentos concretos, era assim algo que eu esperava com imensa ansiedade, mesmo já na altura em que o João se vira obrigado ao exílio, antes das prisões do Verão.
Porém, mesmo agora que estava sem contactos com os militantes que tinham sido meus mentores, continuava a não merecer qualquer correio, qualquer contacto, qualquer directriz! E não era de certeza apenas por meras dificuldades técnicas, porque o conteúdo do relatório de controlo de Setembro, apesar de ser o único recebido até agora, comprovava bem a desatenção que merecíamos à Direcção!...
A Organização não funcionava, portanto, como organização. Publicamente não tinha actividade: não dirigia, não desencadeava, não participava em acções de massas. No meio estudantil, onde nascera e tivera uma projecção dominante nos anos lectivos de 1970 e 1971, estava reduzida a elementos dispersos e isolados, quase desligados da luta de massas, perseguidos pela repressão, ultrapassados pelas outras forças de esquerda cada vez mais pujantes. O conspirativismo que arvorara como justificação para a sua estratégia de construção do Partido, evitando a exposição de dirigentes no interior antes da existência do “aparelho técnico”, provava-se afinal como sofrendo da maior das vulnerabilidades face à PIDE, atestando o fracasso da linha fechada e de isolamento das massas que julgava ser a melhor forma de se proteger.
Em quinze meses de militância recebera um único relatório de controlo, mas nem mesmo nesse houvera qualquer orientação para os problemas práticos que nos iam surgindo. O meu relatório do Natal de 1971 tinha ficado sem qualquer resposta meses a fio, sem a mínima orientação prática. O problema do papel a atribuir à nossa intervenção estudantil e outros problemas organizativos, eram totalmente ignorados. O “Viva o Comunismo!” n.º 6, cuja impressão não fora atribuída ao nosso Comité, ainda não surgira em público apesar dos longos meses decorridos desde a sua redacção (lera o original em Abril e já estávamos em Dezembro). Nenhuma imprensa de agitação era editada pela Organização, continuávamos a dispor apenas da velha e sempre a mesma tarjeta anti-colonial, e entretanto todas as outras organizações se expandiam, causando-me a sensação de que todas iam ultrapassando os CCRM-L a que eu aderira em 1971, os CCRM-L pioneiros da construção do Partido pela saída da Universidade e pela ligação ao operariado.
Ainda no Comité “Luta Popular”, viera-se-me acentuando o desgosto e a ansiedade para com o abandono a que sentia votado o meu trabalho operário e a acção política do Comité, desgosto e ansiedade que Vieira Lopes conhecia perfeitamente e de cuja expressão, em forma de crítica verbal, era portador quando partiu para França, em Agosto de 1972. A nossa suspeita, comum a todos os membros do Comité, era que a Direcção se deixava mergulhar no estudo livresco e ignorava completamente o trabalho prático dos militantes no interior, em particular desleixando o estabelecimento de um sistema de correios que permitisse uma orientação mais efectiva e a troca de informações. Ao mesmo tempo, o artigo sobre a guerra do Vietname no “Viva o Comunismo!” n.º 5, e as elucubrações sobre a “pequena burguesia dos serviços” no “Viva o Comunismo!” n.º 6, davam-nos a impressão de que a Direcção andava muito distraída da vida. A existência de directivas, orientações e esclarecimentos concretos, era assim algo que eu esperava com imensa ansiedade, mesmo já na altura em que o João se vira obrigado ao exílio, antes das prisões do Verão.
Porém, mesmo agora que estava sem contactos com os militantes que tinham sido meus mentores, continuava a não merecer qualquer correio, qualquer contacto, qualquer directriz! E não era de certeza apenas por meras dificuldades técnicas, porque o conteúdo do relatório de controlo de Setembro, apesar de ser o único recebido até agora, comprovava bem a desatenção que merecíamos à Direcção!...
A Organização não funcionava, portanto, como organização. Publicamente não tinha actividade: não dirigia, não desencadeava, não participava em acções de massas. No meio estudantil, onde nascera e tivera uma projecção dominante nos anos lectivos de 1970 e 1971, estava reduzida a elementos dispersos e isolados, quase desligados da luta de massas, perseguidos pela repressão, ultrapassados pelas outras forças de esquerda cada vez mais pujantes. O conspirativismo que arvorara como justificação para a sua estratégia de construção do Partido, evitando a exposição de dirigentes no interior antes da existência do “aparelho técnico”, provava-se afinal como sofrendo da maior das vulnerabilidades face à PIDE, atestando o fracasso da linha fechada e de isolamento das massas que julgava ser a melhor forma de se proteger.
A contestação à direcção da organização
Dois novos factos vieram entretanto reforçar o descrédito político da Direcção perante os nossos Comités: os comunicados publicados pelos CCRM-L sobre o assassínio de Amílcar Cabral e sobre as prisões de Agosto-Setembro de 72. Amílcar Cabral foi assassinado em Conakry em Janeiro, e o julgamento em Tribunal Plenário dos ex-camaradas presos foi realizado em Fevereiro, o que coincidiu mais ou menos com o aparecimento público dos referidos textos.
Desta vez a imprensa dos CCR não nos chegou às mãos pelas vias internas da Organização, mas sim pela sua apanha em locais públicos, como era costume relativamente às outras organizações. Era a primeira vez que víamos algum vestígio público da Organização e, se isso nos alegrava por vermos que ela continuava a existir, por outro lado mais nos reforçava a incompreensão do motivo por que não recebíamos nenhum contacto.
O comunicado sobre o assassinato de Amílcar Cabral, intitulado “Vingaremos Amílcar Cabral!”, era um longo desfile da teoria abstracta e especulativa que caracterizava o “Viva o Comunismo!”, acerca dos diversos sectores da burguesia e camadas da pequena burguesia e outras classes não-proletárias e dos seus interesses sobre o colonialismo. Encontrado pelo Rui junto às fábricas da Venda Nova–Amadora, o comunicado entristeceu-nos muito pela perseverança que constatámos na Direcção da Organização em prosseguir o seu estilo completamente inacessível aos trabalhadores. Além disso e quanto aos factos concretos, observava-se irresponsabilidade e precipitação no julgamento feito: Amílcar Cabral fora, aparentemente, assassinado por camaradas do PAIGC, talvez prenunciando as clivagens étnicas e tribalistas que viriam mais tarde a destruir o movimento. Mas a Direcção dos CCRM-L assumia que tinha sido morto pela PIDE, sem apresentar qualquer prova!
O segundo comunicado, que encontrei na casa de banho da Associação de Estudantes do “Técnico”, era sobre as prisões de Agosto e Setembro de 72 e, depois de fazer também um longo arrazoado teórico sobre um pretenso refluxo do movimento operário português (quando é que tinha sido o fluxo?), expulsava da Organização o Fernando B. e o Rui Henriques, declarava que o Joaquim Manuel “nunca tinha pertencido, não pertencia nem nunca pertenceria” aos CCRM-L, e prometia “medidas especiais” para o Carlos António pelo seu comportamento de traição. A leviandade com que eram tratados estes camaradas, em relação aos quais se apelava a “todos os revolucionários” para os afastarem do seu convívio pessoal, era-me flagrante na enumeração das torturas a que haviam sido sujeitos: o comunicado atribuía-lhes as sevícias que eu próprio noticiara para Paris na altura, mas que eu ainda não tinha confirmado e que viria a constatar terem sido exageradas. Portanto, se a Direcção era tão leviana a publicar os meus relatos não confirmados acerca das torturas dos presos, podia eu avaliar a ausência de senso de responsabilidades com que os excomungava do movimento antifascista!…
Desta vez a imprensa dos CCR não nos chegou às mãos pelas vias internas da Organização, mas sim pela sua apanha em locais públicos, como era costume relativamente às outras organizações. Era a primeira vez que víamos algum vestígio público da Organização e, se isso nos alegrava por vermos que ela continuava a existir, por outro lado mais nos reforçava a incompreensão do motivo por que não recebíamos nenhum contacto.
O comunicado sobre o assassinato de Amílcar Cabral, intitulado “Vingaremos Amílcar Cabral!”, era um longo desfile da teoria abstracta e especulativa que caracterizava o “Viva o Comunismo!”, acerca dos diversos sectores da burguesia e camadas da pequena burguesia e outras classes não-proletárias e dos seus interesses sobre o colonialismo. Encontrado pelo Rui junto às fábricas da Venda Nova–Amadora, o comunicado entristeceu-nos muito pela perseverança que constatámos na Direcção da Organização em prosseguir o seu estilo completamente inacessível aos trabalhadores. Além disso e quanto aos factos concretos, observava-se irresponsabilidade e precipitação no julgamento feito: Amílcar Cabral fora, aparentemente, assassinado por camaradas do PAIGC, talvez prenunciando as clivagens étnicas e tribalistas que viriam mais tarde a destruir o movimento. Mas a Direcção dos CCRM-L assumia que tinha sido morto pela PIDE, sem apresentar qualquer prova!
O segundo comunicado, que encontrei na casa de banho da Associação de Estudantes do “Técnico”, era sobre as prisões de Agosto e Setembro de 72 e, depois de fazer também um longo arrazoado teórico sobre um pretenso refluxo do movimento operário português (quando é que tinha sido o fluxo?), expulsava da Organização o Fernando B. e o Rui Henriques, declarava que o Joaquim Manuel “nunca tinha pertencido, não pertencia nem nunca pertenceria” aos CCRM-L, e prometia “medidas especiais” para o Carlos António pelo seu comportamento de traição. A leviandade com que eram tratados estes camaradas, em relação aos quais se apelava a “todos os revolucionários” para os afastarem do seu convívio pessoal, era-me flagrante na enumeração das torturas a que haviam sido sujeitos: o comunicado atribuía-lhes as sevícias que eu próprio noticiara para Paris na altura, mas que eu ainda não tinha confirmado e que viria a constatar terem sido exageradas. Portanto, se a Direcção era tão leviana a publicar os meus relatos não confirmados acerca das torturas dos presos, podia eu avaliar a ausência de senso de responsabilidades com que os excomungava do movimento antifascista!…
Em desespero de causa
O João Pedro alugara, com a namorada, uma casa no Algueirão, sem água, sem luz, sem mobília, onde tinha reuniões semi-legais de carácter associativo com um grupo de estudantes do liceu de Sintra, activistas políticos onde a sua irmã Cristina era a figura proeminente. Ora o João Pedro pôs-me a casa à disposição e por isso pedi-lhe uma chave, passando a ter aí reuniões com o Rui e o Filipe mas sem que nunca ninguém os visse, encontrando-me eu a sós com o João Pedro e por vezes com a sua namorada, que ele parecia trazer ao corrente de todas as suas actividades e comprometimentos. Essa casa dava-nos, por fim, um alojamento temporário para o copiógrafo que tanto ambicionávamos.
Acontece que em tempos, numa velha arrecadação da Associação de Estudantes do “Técnico”, haviam sido encontrados dois velhos copiadores manuais que, de velhos que estavam, careciam de peças, tinham outras avariadas, e tudo ferrugento. O Carlos António lograra apoderar-se de um, mas nunca conseguira consertá-lo e acabara por recorrer ao roubo de uma máquina eléctrica da Associação na Páscoa de 72, tendo no entanto acabado por ficar com o velho e avariado copiador manual em seu poder.
Em Janeiro, depois de obtida a utilização da casa do Algueirão, pedi então à irmã do Carlos António, a Guida, que introduzisse na Cadeia de Caxias um bilhetinho a pedir ao irmão que me fizesse entregar o copiador. Como em Caxias havia vidros a separar os presos dos visitantes e o contacto físico era impossível, e os guardas e possíveis microfones de vigilância impediam conversas sobre questões conspirativas, havia que aproveitar as visitas especiais em salas comuns que o regulamento prisional concedia em datas festivas como aniversários, Natal e Ano Novo, e iludir a vigilância dos guardas. A Guida assim fez, e trouxe indicações para que o guardião do copiador, o Gil Braga, um engenheiro nosso simpatizante, o transportasse no seu automóvel para casa da irmã mais velha do Carlos, na Parede, numa caixa de cartão que escondia o seu conteúdo.
Pedi depois a um dos estudantes do “Técnico” que a minha militância aproximara dos CCRM-L e com quem passara a ter uma ligação política semi-legal, o Saraiva, para vir comigo no seu carro fazer o transporte do pesado caixote da Parede para o Algueirão e, como o Saraiva era um activista discreto e responsável, prestou-se à ajuda sem fazer perguntas. Finalmente, na casa do Algueirão, o caixote foi alojado sem eu dar contas do seu conteúdo ao João Pedro.
O Rui, e especialmente o Filipe, que era mais habilidoso e que dada a sua forçada inactividade estava desejoso de ser útil, puseram em acção as suas qualidades manuais de operários e, consertando peças, fazendo construir outras, lá foram arranjando o copiógrafo nos fins de semana, coisa que ocupou os meses de Fevereiro e Março. Provavelmente teriam chegado a imprimir-se boas coisas neste aparelho tão carinhosamente tratado se os acontecimentos posteriores não tivessem impedido que chegasse a ser utilizado…!
Acontece que em tempos, numa velha arrecadação da Associação de Estudantes do “Técnico”, haviam sido encontrados dois velhos copiadores manuais que, de velhos que estavam, careciam de peças, tinham outras avariadas, e tudo ferrugento. O Carlos António lograra apoderar-se de um, mas nunca conseguira consertá-lo e acabara por recorrer ao roubo de uma máquina eléctrica da Associação na Páscoa de 72, tendo no entanto acabado por ficar com o velho e avariado copiador manual em seu poder.
Em Janeiro, depois de obtida a utilização da casa do Algueirão, pedi então à irmã do Carlos António, a Guida, que introduzisse na Cadeia de Caxias um bilhetinho a pedir ao irmão que me fizesse entregar o copiador. Como em Caxias havia vidros a separar os presos dos visitantes e o contacto físico era impossível, e os guardas e possíveis microfones de vigilância impediam conversas sobre questões conspirativas, havia que aproveitar as visitas especiais em salas comuns que o regulamento prisional concedia em datas festivas como aniversários, Natal e Ano Novo, e iludir a vigilância dos guardas. A Guida assim fez, e trouxe indicações para que o guardião do copiador, o Gil Braga, um engenheiro nosso simpatizante, o transportasse no seu automóvel para casa da irmã mais velha do Carlos, na Parede, numa caixa de cartão que escondia o seu conteúdo.
Pedi depois a um dos estudantes do “Técnico” que a minha militância aproximara dos CCRM-L e com quem passara a ter uma ligação política semi-legal, o Saraiva, para vir comigo no seu carro fazer o transporte do pesado caixote da Parede para o Algueirão e, como o Saraiva era um activista discreto e responsável, prestou-se à ajuda sem fazer perguntas. Finalmente, na casa do Algueirão, o caixote foi alojado sem eu dar contas do seu conteúdo ao João Pedro.
O Rui, e especialmente o Filipe, que era mais habilidoso e que dada a sua forçada inactividade estava desejoso de ser útil, puseram em acção as suas qualidades manuais de operários e, consertando peças, fazendo construir outras, lá foram arranjando o copiógrafo nos fins de semana, coisa que ocupou os meses de Fevereiro e Março. Provavelmente teriam chegado a imprimir-se boas coisas neste aparelho tão carinhosamente tratado se os acontecimentos posteriores não tivessem impedido que chegasse a ser utilizado…!
Os ultimos contactos
O pacote trazia três circulares sem grande importância; porém, a Direcção resolvera iniciar a edição de um jornal interno que substituísse as circulares, permitindo a expansão da discussão interna. O “Vanguarda Comunista”, assim se chamava esse boletim, continha um balanço da actividade da Organização em 1971 e 1972 e, apesar de não mencionar nomes, confirmava, afinal, a suspeita em que eu vivia de que realmente a Organização se restringia pouco mais ou menos ao que eu podia ver dela e que, portanto, a crise profunda evidente no que me era visível era a crise da própria Organização.
Depois vinham os relatórios de controlo: o meu, com o título “De Miguel para Vicente”, vinha separado do dos outros dois camaradas, embora uma parte inicial fosse comum, já que tratava da actividade propriamente do Comité. “Miguel” alterava-me o pseudónimo de “Vicente” para “Rosário”, dado o anterior ter sido denunciado pelo Carlos e, de seguida, acusava-me de comiteísmo e subjectivismo nas críticas iradas que o meu Comité fizera em Setembro e Dezembro de 1972, exigindo-me a redacção de uma autocrítica. O relatório enviado em Março, em que eu tomara a iniciativa de abandonar o pseudónimo de “Vicente” retomando provisoriamente o de “Aníbal”, bem como o documento “Na via revolucionária”, feito a meias com o Comité do João Pedro e enviado em Fevereiro, ainda não eram mencionados. Talvez a letra miúda com que haviam sido manuscritos desse demasiado trabalho a ler a quem tinha tantos afazeres...
Na parte do relatório que era destinada a todo o Comité éramos desancados pelo conteúdo da tarjeta “A União faz a força” que fizéramos para a Venda Nova, acusando-nos de falta de referências concretas a problemas locais, o que nos criou a maior das confusões: mas então, afinal, pretendia-se que se mencionasse problemas concretos para fazer o quê com eles, se não nos era permitida depois a direcção de lutas colectivas, se não podíamos apontar vias de acção e dirigi-las? E nada era dito quanto à carência de meios técnicos para a impressão destes panfletos...!
De seguida, “Miguel” esclarecia-me que se, no relatório de controlo anterior, desvendara a qualidade de militante de Vieira Lopes aos meus camaradas operários, isso fora por razões que não me competia questionar... e criticava-me furiosamente por ter tomado em ombros o trabalho estudantil “herdado” do Carlos, escamoteando sem uma palavra a sua própria responsabilidade nisso, ao ter-me deixado abandonado tantos meses nas circunstâncias de isolamento em que ficara, sem qualquer orientação fosse em que sentido fosse!
E, estranhamente, “Miguel” parecia ignorar não só o trabalho que eu já havia feito na Universidade antes das prisões de 72, como a ideia existente no Comité “Luta Popular” de que eu era o futuro representante da linha dos CCRM-L no “Técnico”, ideia que vinha da própria Direcção, do “Júlio”, cuja responsabilidade pelo sector estudantil tinha sido ratificada pelo próprio “Miguel” mas de que, aparentemente, este não parecia estar recordado! Nem informado de que essa representação me fora transferida pelo Carlos António desde a Páscoa!...
Depois vinham os relatórios de controlo: o meu, com o título “De Miguel para Vicente”, vinha separado do dos outros dois camaradas, embora uma parte inicial fosse comum, já que tratava da actividade propriamente do Comité. “Miguel” alterava-me o pseudónimo de “Vicente” para “Rosário”, dado o anterior ter sido denunciado pelo Carlos e, de seguida, acusava-me de comiteísmo e subjectivismo nas críticas iradas que o meu Comité fizera em Setembro e Dezembro de 1972, exigindo-me a redacção de uma autocrítica. O relatório enviado em Março, em que eu tomara a iniciativa de abandonar o pseudónimo de “Vicente” retomando provisoriamente o de “Aníbal”, bem como o documento “Na via revolucionária”, feito a meias com o Comité do João Pedro e enviado em Fevereiro, ainda não eram mencionados. Talvez a letra miúda com que haviam sido manuscritos desse demasiado trabalho a ler a quem tinha tantos afazeres...
Na parte do relatório que era destinada a todo o Comité éramos desancados pelo conteúdo da tarjeta “A União faz a força” que fizéramos para a Venda Nova, acusando-nos de falta de referências concretas a problemas locais, o que nos criou a maior das confusões: mas então, afinal, pretendia-se que se mencionasse problemas concretos para fazer o quê com eles, se não nos era permitida depois a direcção de lutas colectivas, se não podíamos apontar vias de acção e dirigi-las? E nada era dito quanto à carência de meios técnicos para a impressão destes panfletos...!
De seguida, “Miguel” esclarecia-me que se, no relatório de controlo anterior, desvendara a qualidade de militante de Vieira Lopes aos meus camaradas operários, isso fora por razões que não me competia questionar... e criticava-me furiosamente por ter tomado em ombros o trabalho estudantil “herdado” do Carlos, escamoteando sem uma palavra a sua própria responsabilidade nisso, ao ter-me deixado abandonado tantos meses nas circunstâncias de isolamento em que ficara, sem qualquer orientação fosse em que sentido fosse!
E, estranhamente, “Miguel” parecia ignorar não só o trabalho que eu já havia feito na Universidade antes das prisões de 72, como a ideia existente no Comité “Luta Popular” de que eu era o futuro representante da linha dos CCRM-L no “Técnico”, ideia que vinha da própria Direcção, do “Júlio”, cuja responsabilidade pelo sector estudantil tinha sido ratificada pelo próprio “Miguel” mas de que, aparentemente, este não parecia estar recordado! Nem informado de que essa representação me fora transferida pelo Carlos António desde a Páscoa!...
A prisão pela PIDE e a espera + A violentação
Eram dezoito horas do dia 30 de Abril de 1973 quando rodei a chave da porta de casa e deparei com o meu irmão, a minha mãe, a minha avó e… seis agentes da PIDE! Ou, mais exactamente, quatro agentes. Os outros dois estavam nas imediações exteriores da casa e entraram logo a seguir a mim, cortando-me a retirada. Um deles saíra do prédio, dobrara a esquina e fora para as traseiras quando eu me aproximava ao longe, visando bloquear-me a fuga se a viesse a tentar. A casa tem uma praceta defronte que lhe dá boa visibilidade, mas só percebi que era um polícia tarde demais.
Por entre a nebulosidade que me envolveu o raciocínio e os sentidos, consegui pensar: “Chegou a minha vez!”. O terror invadiu-me; instantaneamente apercebi-me da gravidade dos documentos que transportava comigo e do grau destrutivo daquela prisão. Apoderou-se de mim a necessidade de urinar e fiquei com a boca seca, sem ouvir nem ver, a mexer-me como um autómato.
Tinham já revistado a casa e apreendido diversos panfletos e alguns papéis com apontamentos sobre a minha actividade política. No caminho para casa vinha precisamente a pensar na necessidade de a limpar, pois já há semanas que andava com um pressentimento…
Na carteira que trazia no bolso havia outros apontamentos que, em conjunto, continham as iniciais dos nomes de todos os indivíduos politicamente ligados a mim. Uma das notas manuscritas tratava de coisas do Comité e do João Pedro, outra continha grandes organigramas partidários que resultavam de devaneios meus sobre o futuro da Organização, e havia até dois relatórios redigidos com as próprias caligrafias do Rui e do Filipe, intitulados “trabalho de implantação operária Dez-Mar”...!
Mas o mais grave era a pasta que eu transportava. Continha o grosso envelope recebido da Direcção da Organização quatro dias antes, com algumas circulares internas, dois números do jornal interno “Vanguarda Comunista”, o volumoso relatório de controlo “De Miguel para Vicente” e o longo texto “Na via revolucionária” assinado pelo meu Comité e pelo do João Pedro.
Os agentes dactilografaram uma amostra do alfabeto das máquinas de escrever existentes em casa e um auto de apreensão. Recusei assiná-lo, e os agentes mostraram-me então um mandato de captura. O choque em que estava só me permitiu reter o final: “… nos termos dum processo que corre contra ele nesta Direcção-Geral”. Associei logo isto às denúncias do Joaquim Manuel contra mim meses antes.
No meio da névoa provocada pelo terror consegui desfazer-me de um molho de chaves que meti à socapa no forro de um sofá num momento de distracção dos agentes, e dum papelinho com uma morada que engoli, o que me custou bastante devido à secura da boca. As chaves eram da casa clandestina no Algueirão e a morada era a da Ana Pais, que eu enviara para Paris e onde deveria receber o postal de um dirigente com a data do encontro que finalmente a Direcção me concedera.
... A violentação...
Pegaram na mesa e levaram-na para um canto da sala, enquanto o Celso dizia:
- Senhor Sá, acabou-se a brincadeira!
Empurraram-me para junto da mesa e o Celso desatou a esbofetear-me violentamente, enquanto ia ininterruptamente falando. Segundo ele, do que eu gostava era de beber cerveja na cervejaria Portugália e de não fazer nenhum, andava eu a estragar o meu curso enquanto os meus pais me sustentavam e os meus chefes estavam regalados em Paris sem exporem a pele, andava a atraiçoar os meus pais, que, como todos os velhos, sabiam muito, que não tinha pinta de político, porque é que me metia nisso, que o que eu queria era ganhar dinheiro e ter um carro, etc … e ia-me esbofeteando violenta e rapidamente enquanto falava.
Depois começou a mostrar-se irritado por eu parecer mudo e mandou-me pôr a mão direita espalmada sobre a mesa e, enquanto me seguravam, acendeu sucessivamente três fósforos e queimou-me as costas da mão com eles, apagando-os na minha pele.
Eu estava completamente aterrado, com o cérebro bloqueado e incapaz de reagir criticamente ao que ele dizia, incapaz de pensar e de os agredir ou de me defender.
Os dois então empurraram-me para junto duma parede e, nessa altura, entrou o agente Magalhães da Silva que me desatou a insultar, a dizer que eu “assim, nem a Organização estava a defender”, falando muito rapidamente sem eu conseguir pensar, e dizendo a rir sarcasticamente:
- Sabe o que é a estátua? É o que vai fazer! Torturas?… Torturas fazem-nas os russos e os chineses… mas muito mais requintadas!…
E dava-me grandes “caldos” no pescoço. Então o agente Celso mandou-me pôr em sentido e a olhar para um ponto fixo na parede. E dava-me pontapés nos tornozelos “para eu os juntar”, dizia, e puxava-me pelas orelhas dizendo “Para ali!”, apontando para o ponto da parede que eu devia fixar.
O agente Magalhães mandou-me então despir a camisola de malha, e a seguir o agente Celso mandou-me vesti-la. Quando a vesti de novo, o Magalhães deu-me uma grande pancada na nuca e gritou que ma tinha mandado despir. Estiveram nisto um bom bocado e riam-se; quando despia a camisola, era o Celso que me batia com grandes bofetadas ou murros na testa, e quando a vestia era o Magalhães que me batia, com pancadas na nuca que quase me atiravam ao chão. Um mandava vestir e batia à frente, o outro mandava despir e batia por trás.
A certa altura deixei de despir a camisola e fiquei quieto, completamente atordoado e quase a chorar. Não tinha dores, nem mesmo das queimaduras dos fósforos. O efeito da pancada, com o atordoamento que trazia do sono, era sobretudo psicológico, criando-me submissão ao que me iam dizendo.
O Celso então disse-me:
- Quer pensar? Quer reconsiderar? Quantos dias quer? Um, dois, uma semana, duas? Duas semanas, pronto! Já mandámos cortar a sua visita da próxima semana, de modo que vai ter duas semanas para pensar! E agora fica aqui em estátua e vá pensando! E está com sorte porque quando aqui entrámos éramos para lhe dar uma sova que o deixasse aí esticado ao canto… para passar o resto da noite bem acordado!…
E então saíram da sala, deixando a guardar-me um quarto agente que entretanto entrara.
Ali assim em sentido a olhar para a parede, algumas horas depois já não conseguia manter-me quieto. Comecei a apoiar-me primeiro numa perna, depois na outra. O agente que me guardava começou a ameaçar-me de chamar os colegas.
Por entre a nebulosidade que me envolveu o raciocínio e os sentidos, consegui pensar: “Chegou a minha vez!”. O terror invadiu-me; instantaneamente apercebi-me da gravidade dos documentos que transportava comigo e do grau destrutivo daquela prisão. Apoderou-se de mim a necessidade de urinar e fiquei com a boca seca, sem ouvir nem ver, a mexer-me como um autómato.
Tinham já revistado a casa e apreendido diversos panfletos e alguns papéis com apontamentos sobre a minha actividade política. No caminho para casa vinha precisamente a pensar na necessidade de a limpar, pois já há semanas que andava com um pressentimento…
Na carteira que trazia no bolso havia outros apontamentos que, em conjunto, continham as iniciais dos nomes de todos os indivíduos politicamente ligados a mim. Uma das notas manuscritas tratava de coisas do Comité e do João Pedro, outra continha grandes organigramas partidários que resultavam de devaneios meus sobre o futuro da Organização, e havia até dois relatórios redigidos com as próprias caligrafias do Rui e do Filipe, intitulados “trabalho de implantação operária Dez-Mar”...!
Mas o mais grave era a pasta que eu transportava. Continha o grosso envelope recebido da Direcção da Organização quatro dias antes, com algumas circulares internas, dois números do jornal interno “Vanguarda Comunista”, o volumoso relatório de controlo “De Miguel para Vicente” e o longo texto “Na via revolucionária” assinado pelo meu Comité e pelo do João Pedro.
Os agentes dactilografaram uma amostra do alfabeto das máquinas de escrever existentes em casa e um auto de apreensão. Recusei assiná-lo, e os agentes mostraram-me então um mandato de captura. O choque em que estava só me permitiu reter o final: “… nos termos dum processo que corre contra ele nesta Direcção-Geral”. Associei logo isto às denúncias do Joaquim Manuel contra mim meses antes.
No meio da névoa provocada pelo terror consegui desfazer-me de um molho de chaves que meti à socapa no forro de um sofá num momento de distracção dos agentes, e dum papelinho com uma morada que engoli, o que me custou bastante devido à secura da boca. As chaves eram da casa clandestina no Algueirão e a morada era a da Ana Pais, que eu enviara para Paris e onde deveria receber o postal de um dirigente com a data do encontro que finalmente a Direcção me concedera.
... A violentação...
Pegaram na mesa e levaram-na para um canto da sala, enquanto o Celso dizia:
- Senhor Sá, acabou-se a brincadeira!
Empurraram-me para junto da mesa e o Celso desatou a esbofetear-me violentamente, enquanto ia ininterruptamente falando. Segundo ele, do que eu gostava era de beber cerveja na cervejaria Portugália e de não fazer nenhum, andava eu a estragar o meu curso enquanto os meus pais me sustentavam e os meus chefes estavam regalados em Paris sem exporem a pele, andava a atraiçoar os meus pais, que, como todos os velhos, sabiam muito, que não tinha pinta de político, porque é que me metia nisso, que o que eu queria era ganhar dinheiro e ter um carro, etc … e ia-me esbofeteando violenta e rapidamente enquanto falava.
Depois começou a mostrar-se irritado por eu parecer mudo e mandou-me pôr a mão direita espalmada sobre a mesa e, enquanto me seguravam, acendeu sucessivamente três fósforos e queimou-me as costas da mão com eles, apagando-os na minha pele.
Eu estava completamente aterrado, com o cérebro bloqueado e incapaz de reagir criticamente ao que ele dizia, incapaz de pensar e de os agredir ou de me defender.
Os dois então empurraram-me para junto duma parede e, nessa altura, entrou o agente Magalhães da Silva que me desatou a insultar, a dizer que eu “assim, nem a Organização estava a defender”, falando muito rapidamente sem eu conseguir pensar, e dizendo a rir sarcasticamente:
- Sabe o que é a estátua? É o que vai fazer! Torturas?… Torturas fazem-nas os russos e os chineses… mas muito mais requintadas!…
E dava-me grandes “caldos” no pescoço. Então o agente Celso mandou-me pôr em sentido e a olhar para um ponto fixo na parede. E dava-me pontapés nos tornozelos “para eu os juntar”, dizia, e puxava-me pelas orelhas dizendo “Para ali!”, apontando para o ponto da parede que eu devia fixar.
O agente Magalhães mandou-me então despir a camisola de malha, e a seguir o agente Celso mandou-me vesti-la. Quando a vesti de novo, o Magalhães deu-me uma grande pancada na nuca e gritou que ma tinha mandado despir. Estiveram nisto um bom bocado e riam-se; quando despia a camisola, era o Celso que me batia com grandes bofetadas ou murros na testa, e quando a vestia era o Magalhães que me batia, com pancadas na nuca que quase me atiravam ao chão. Um mandava vestir e batia à frente, o outro mandava despir e batia por trás.
A certa altura deixei de despir a camisola e fiquei quieto, completamente atordoado e quase a chorar. Não tinha dores, nem mesmo das queimaduras dos fósforos. O efeito da pancada, com o atordoamento que trazia do sono, era sobretudo psicológico, criando-me submissão ao que me iam dizendo.
O Celso então disse-me:
- Quer pensar? Quer reconsiderar? Quantos dias quer? Um, dois, uma semana, duas? Duas semanas, pronto! Já mandámos cortar a sua visita da próxima semana, de modo que vai ter duas semanas para pensar! E agora fica aqui em estátua e vá pensando! E está com sorte porque quando aqui entrámos éramos para lhe dar uma sova que o deixasse aí esticado ao canto… para passar o resto da noite bem acordado!…
E então saíram da sala, deixando a guardar-me um quarto agente que entretanto entrara.
Ali assim em sentido a olhar para a parede, algumas horas depois já não conseguia manter-me quieto. Comecei a apoiar-me primeiro numa perna, depois na outra. O agente que me guardava começou a ameaçar-me de chamar os colegas.
A conquista das almas
E assim, naqueles dias 23, 24 e 25 de Maio, a PIDE, a minha terra natal e os meus pais, surgiam-me fundidos num todo. Ofereciam-me amor em troca do retorno à casa paterna que eu renegara três anos antes. Perdoavam-me ter-me oposto aos meus pais, aos amigos de infância, a todos os que me amavam e de quem, surpreendentemente, eu afinal sentia tanta culpa por ter combatido. Perdoavam-me desde que me arrependesse, claro!
A pessoa que centralizava perante mim todo este processo era o Chefe de Brigada Inácio Afonso. Além do mais, ele era a pessoa de idade que compreendia estes meus erros juvenis, um homem cheio de humanidade, compreensivo… E claro, fazia-me ver como os CCRM-L eram os responsáveis pelo meu descaminho!
Havia no entanto outro aspecto na mentalização: todos os agentes me aconselhavam a colaborar, a cooperar com o chefe, que ele era leal e compreensivo; mas também me falavam da importância que isso teria para o meu julgamento, se eu fosse a julgamento, e da tropa disciplinar e do desemprego que me esperariam se não colaborasse. À amizade não deixavam de juntar a menção ao preço de não corresponder.
Estas alusões não me assustavam pelas suas consequências práticas. Queria lá saber do emprego público ou das condições da tropa, ou até de estar ou não metido anos numa cela! Eram coisas que não tinham nenhum significado, para mim que resolvera tudo sacrificar meses antes à causa, sabendo que me esperava na melhor hipótese um exílio de que não fazia a menor ideia como seria, nem de como lá chegaria, mas que de qualquer modo seria sempre o fim de qualquer carreira pessoal, o que nada me importava.
O que me assustava naquelas alusões era a possibilidade de ser de novo abandonado por todo este mundo de afectos que me conquistara, depois de ter cortado para sempre com o outro para quem passara a ser um inimigo!
De modo que, no dia 25 à noite, quando regressei à minha cela no Reduto Norte, vinha profundamente comovido com a humanidade da PIDE, arrependido de me ter afastado dos valores familiares e cheio de saudades de Angola. E furioso com os CCRM-L por me terem desencaminhado!…
Tornara-me um “arrependido”. Genuína e desinteressadamente…
Esta adesão ideológica não deixou de se desenvolver durante os dois meses seguintes de isolamento celular, só quebrado pelos interrogatórios.
Nos quinze dias imediatos não me voltaram a chamar. A angústia, o desequilíbrio nervoso e a solidão da cela levaram-me a afogar na comida a tortura do isolamento: engordei dez quilos neste período! Na nova vida que agora encetava, de reconciliação com o bom caminho, como agora o via, pedi autorização para ter livros de estudo de engenharia, que me foi imediatamente concedida. Escrevi para casa a pedir os livros e, na visita seguinte (29 de Maio), já os tinha. A minha mãe, coitada, fazia tudo o que lhe parecia necessário para me ajudar naquele momento, e dedicar-me ao estudo era o que ela achava que eu já devia ter feito há muito tempo!
Este alívio na privação sensorial que os livros de estudo constituíam recebi-o tão sofregamente que nunca como até então mergulhei com tanta intensidade nas deduções lógicas da Matemática. Congeminei imensos planos de estudo para o meu retorno à engenharia e às disciplinas que tinha de fazer, e sentia-me feliz por com isso imaginar que voltava a ganhar a amizade e o apoio paternos. O estudo entusiasmava-me extraordinariamente sobretudo por ter alguma coisa a que me dedicar, que me ocupasse e desse sentido à vida!
Aí por volta do dia 6 de Junho voltei ao Reduto Sul, para esclarecer pequenas dúvidas que tinham subsistido. Na altura forneci um manuscrito contendo uma opinião sobre o António Manuel, que era já uma informação à margem do meu processo e que redigira na cela, onde dispunha desde o início de papel e várias esferográficas de diferentes cores. Esta escrita das informações para a PIDE era a forma como a PIDE quisera, desde o primeiro momento, que eu contasse o que sabia: por escrito. Sem distinção entre o que me dizia ou não me dizia respeito, do ponto de vista do Processo judicial, processo que para mim não tinha qualquer significado jurídico. Escrevia essas coisas essencialmente na esperança de que assim, depois, Inácio Afonso quisesse conversar comigo e me mantivesse a estima que tinha demonstrado, e que era o que eu mais desejava, na longa solidão da cela e sabendo-me totalmente proscrito pelo mundo onde vivera nos últimos três anos...
A pessoa que centralizava perante mim todo este processo era o Chefe de Brigada Inácio Afonso. Além do mais, ele era a pessoa de idade que compreendia estes meus erros juvenis, um homem cheio de humanidade, compreensivo… E claro, fazia-me ver como os CCRM-L eram os responsáveis pelo meu descaminho!
Havia no entanto outro aspecto na mentalização: todos os agentes me aconselhavam a colaborar, a cooperar com o chefe, que ele era leal e compreensivo; mas também me falavam da importância que isso teria para o meu julgamento, se eu fosse a julgamento, e da tropa disciplinar e do desemprego que me esperariam se não colaborasse. À amizade não deixavam de juntar a menção ao preço de não corresponder.
Estas alusões não me assustavam pelas suas consequências práticas. Queria lá saber do emprego público ou das condições da tropa, ou até de estar ou não metido anos numa cela! Eram coisas que não tinham nenhum significado, para mim que resolvera tudo sacrificar meses antes à causa, sabendo que me esperava na melhor hipótese um exílio de que não fazia a menor ideia como seria, nem de como lá chegaria, mas que de qualquer modo seria sempre o fim de qualquer carreira pessoal, o que nada me importava.
O que me assustava naquelas alusões era a possibilidade de ser de novo abandonado por todo este mundo de afectos que me conquistara, depois de ter cortado para sempre com o outro para quem passara a ser um inimigo!
De modo que, no dia 25 à noite, quando regressei à minha cela no Reduto Norte, vinha profundamente comovido com a humanidade da PIDE, arrependido de me ter afastado dos valores familiares e cheio de saudades de Angola. E furioso com os CCRM-L por me terem desencaminhado!…
Tornara-me um “arrependido”. Genuína e desinteressadamente…
Esta adesão ideológica não deixou de se desenvolver durante os dois meses seguintes de isolamento celular, só quebrado pelos interrogatórios.
Nos quinze dias imediatos não me voltaram a chamar. A angústia, o desequilíbrio nervoso e a solidão da cela levaram-me a afogar na comida a tortura do isolamento: engordei dez quilos neste período! Na nova vida que agora encetava, de reconciliação com o bom caminho, como agora o via, pedi autorização para ter livros de estudo de engenharia, que me foi imediatamente concedida. Escrevi para casa a pedir os livros e, na visita seguinte (29 de Maio), já os tinha. A minha mãe, coitada, fazia tudo o que lhe parecia necessário para me ajudar naquele momento, e dedicar-me ao estudo era o que ela achava que eu já devia ter feito há muito tempo!
Este alívio na privação sensorial que os livros de estudo constituíam recebi-o tão sofregamente que nunca como até então mergulhei com tanta intensidade nas deduções lógicas da Matemática. Congeminei imensos planos de estudo para o meu retorno à engenharia e às disciplinas que tinha de fazer, e sentia-me feliz por com isso imaginar que voltava a ganhar a amizade e o apoio paternos. O estudo entusiasmava-me extraordinariamente sobretudo por ter alguma coisa a que me dedicar, que me ocupasse e desse sentido à vida!
Aí por volta do dia 6 de Junho voltei ao Reduto Sul, para esclarecer pequenas dúvidas que tinham subsistido. Na altura forneci um manuscrito contendo uma opinião sobre o António Manuel, que era já uma informação à margem do meu processo e que redigira na cela, onde dispunha desde o início de papel e várias esferográficas de diferentes cores. Esta escrita das informações para a PIDE era a forma como a PIDE quisera, desde o primeiro momento, que eu contasse o que sabia: por escrito. Sem distinção entre o que me dizia ou não me dizia respeito, do ponto de vista do Processo judicial, processo que para mim não tinha qualquer significado jurídico. Escrevia essas coisas essencialmente na esperança de que assim, depois, Inácio Afonso quisesse conversar comigo e me mantivesse a estima que tinha demonstrado, e que era o que eu mais desejava, na longa solidão da cela e sabendo-me totalmente proscrito pelo mundo onde vivera nos últimos três anos...
Os demónios ideológicos
Em princípios de Fevereiro, porém, e a poucos dias da data marcada para o julgamento, o João Pedro foi levado de novo para o isolamento e daí para interrogatórios. Desconhecia-se o motivo, mas como aquilo era ilegal, uma vez que ele já estava supostamente entregue ao Ministério da Justiça, todas as celas se barricaram imediatamente e começou-se a gritar pelas janelas, avisando as famílias que passavam no exterior da Cadeia. Esta reacção pareceu dar resultado porque a PIDE desistiu do João Pedro. A luta prosseguiu pela ausência de represálias e acabou com a vitória, ao fim de uma semana. As barricadas incluíam, evidentemente, a greve da fome…
As represálias foram ligeiras e já cumpridas: suspensão de visitas, etc. Da experiência de uma semana sem comer recordo sobretudo o tremendo desarranjo intestinal que tive quando depois me alimentei pela primeira vez, apesar de avisado e de ter comido parcimoniosamente…
Mais tarde soube-se que o motivo dos novos interrogatórios ao João Pedro tinha sido um relatório por ele enviado da Cadeia para os CCRM-L e que fora encontrado na posse do António Manuel, preso em Dezembro, pouco antes do Natal.
Com efeito, a 19 de Dezembro, nove dias depois de ter conseguido escapar à PIDE quando esta o tentara prender em casa, o António Manuel foi preso pela GNR em Fontanelas, por suspeita de ladroagem, numa cena espectacular contada nos jornais da época. Nessa pequena aldeia, perto de Sintra, onde possuía uma casa clandestina, o António assumira um comportamento furtivo que despertara as suspeitas da população que o denunciou à GNR. Este caso, bem como o da casa na Abrunheira do João Pedro, mostram como a aparente lonjura das casas de campo relativamente às atenções da PIDE, assim como a prescisão de escrituras para arrendamento, eram infelizmente compensadas pelo controlo que os caciques locais exerciam sobre o quotidiano das suas aldeias e pela impossibilidade de anonimato em meios fechados como os rurais. Não a PIDE, mas sim os próprios adeptos locais do regime se encarregavam, com a GNR, de vigiar, descobrir e denunciar as subversivas actividades desenvolvidas em tais casas.
Uma vez sob a mira dessa gente e sentindo-se vigiado, preparava-se o António Manuel para fugir esperando pela camioneta da carreira numa paragem próxima, quando alguns guardas da GNR se aproximaram dele. A camioneta chegou na mesma altura que a GNR e o António entrou, mas um guarda republicano seguiu atrás dele e o António correu para a porta da frente da camioneta, onde já outro soldado lhe barrava a passagem. O António aí puxou de uma pistola e deu um tiro nesse militar, mas foi dominado pelos restantes.
A seguir os guardas foram com ele à casa suspeita e aí é que descobriram do que se tratava, entregando-o à PIDE depois de o sovarem por ele ter resistido à prisão daquela maneira.
Em Caxias o António Manuel, que passara a usar o pseudónimo de “Eduardo”, foi certamente torturado mas confessou as suas actividades, e consta mesmo ter feito um acordo, negociando a libertação da mulher entretanto presa em Sintra e arcando com a responsabilidade das actividades dela. Era um tipo de negócio que a PIDE fazia muito e disse-se então que o António Manuel teria tentado depois suicidar-se cortando as veias dos pulsos com os próprios dentes. Quanto às suas declarações, viria a conhecê-las apenas décadas depois…
As represálias foram ligeiras e já cumpridas: suspensão de visitas, etc. Da experiência de uma semana sem comer recordo sobretudo o tremendo desarranjo intestinal que tive quando depois me alimentei pela primeira vez, apesar de avisado e de ter comido parcimoniosamente…
Mais tarde soube-se que o motivo dos novos interrogatórios ao João Pedro tinha sido um relatório por ele enviado da Cadeia para os CCRM-L e que fora encontrado na posse do António Manuel, preso em Dezembro, pouco antes do Natal.
Com efeito, a 19 de Dezembro, nove dias depois de ter conseguido escapar à PIDE quando esta o tentara prender em casa, o António Manuel foi preso pela GNR em Fontanelas, por suspeita de ladroagem, numa cena espectacular contada nos jornais da época. Nessa pequena aldeia, perto de Sintra, onde possuía uma casa clandestina, o António assumira um comportamento furtivo que despertara as suspeitas da população que o denunciou à GNR. Este caso, bem como o da casa na Abrunheira do João Pedro, mostram como a aparente lonjura das casas de campo relativamente às atenções da PIDE, assim como a prescisão de escrituras para arrendamento, eram infelizmente compensadas pelo controlo que os caciques locais exerciam sobre o quotidiano das suas aldeias e pela impossibilidade de anonimato em meios fechados como os rurais. Não a PIDE, mas sim os próprios adeptos locais do regime se encarregavam, com a GNR, de vigiar, descobrir e denunciar as subversivas actividades desenvolvidas em tais casas.
Uma vez sob a mira dessa gente e sentindo-se vigiado, preparava-se o António Manuel para fugir esperando pela camioneta da carreira numa paragem próxima, quando alguns guardas da GNR se aproximaram dele. A camioneta chegou na mesma altura que a GNR e o António entrou, mas um guarda republicano seguiu atrás dele e o António correu para a porta da frente da camioneta, onde já outro soldado lhe barrava a passagem. O António aí puxou de uma pistola e deu um tiro nesse militar, mas foi dominado pelos restantes.
A seguir os guardas foram com ele à casa suspeita e aí é que descobriram do que se tratava, entregando-o à PIDE depois de o sovarem por ele ter resistido à prisão daquela maneira.
Em Caxias o António Manuel, que passara a usar o pseudónimo de “Eduardo”, foi certamente torturado mas confessou as suas actividades, e consta mesmo ter feito um acordo, negociando a libertação da mulher entretanto presa em Sintra e arcando com a responsabilidade das actividades dela. Era um tipo de negócio que a PIDE fazia muito e disse-se então que o António Manuel teria tentado depois suicidar-se cortando as veias dos pulsos com os próprios dentes. Quanto às suas declarações, viria a conhecê-las apenas décadas depois…
O julgamento e a revolução
O julgamento prosseguiu na quinta-feira seguinte, dia 21. Falaram os advogados, que pediram a absolvição dos seus constituintes no caso do Rui e do Filipe, ou que fizeram ver o valor do réu no caso do João Pedro, e o meu, que pediu a atenção do tribunal para a minha vontade de ser “reintegrado na sociedade”. Finalmente à tarde os juízes leram a sentença. Todos os quesitos foram considerados provados e nós dados como culpados.
Eu fui condenado a 22 meses de prisão correccional suspensa por cinco anos, quase no limite do que era suspendível, privação de direitos políticos igualmente por cinco anos, e ao pagamento de um imposto de justiça e das custas judiciais (cerca de 800 euros de 2006). Foram expressamente consideradas como atenuantes a colaboração prestada na instrução do processo e a vontade manifestada de “reintegração na sociedade”, coisa que o jornal “República” noticiou com todas as letras.
O Rui e o Filipe foram condenados a 18 meses de prisão correccional suspensa por três anos, privação de direitos políticos por cinco anos e ao pagamento de custas e multa no valor de 480 euros actuais. Como atenuante foi-lhes considerada a condição económica e, relativamente à absolvição pedida pelos respectivos advogados, os juízes observaram que os réus não tinham contestado os volumosos autos de declarações prestadas na instrução do processo e que, portanto, os factos eram dados como provados.
Finalmente o João Pedro foi condenado a dois anos e meio de prisão maior, como pretendia, e à perda de direitos políticos por quinze anos; como agravante foi-lhe considerado o seu comportamento no Tribunal.
Tudo isto constou do corpo do processo, o processo-crime contra a segurança do Estado n.º 76/A – 73 arquivado no 1º Juízo Criminal do Tribunal da Boa Hora.
E assim saímos do Tribunal em liberdade eu, o Rui e o Filipe. Sofrera eu dez meses de prisão celular e eles oito meses e meio.
Saí da Cadeia completamente arrasado do sistema nervoso. Não conseguia falar mais de meia hora sem ter de me deitar, por causa das náuseas que me invadiam. Não conseguia ler, nem conversar, nem ver TV, e quando tentei ver cinema pela primeira vez quase enlouqueci. Também é verdade que o filme que fui ver era “A Máscara”, de Ingmar Bergman...
Tinha crises de terrível ansiedade seguidas de quebras de fadiga tais que quase não conseguia arrastar as pernas. Aliás, durante quinze dias elas doeram-me, devido à perda do hábito de andar no regime de prisão celular em que vivera. A única coisa que me aguentava eram os anseolíticos que eu poupara na Cadeia e que trouxera, continuando a tomá-los.
Estava completamente confuso das ideias. Aliás, estava extremamente sugestionável a quaisquer ideias! Não sabia se devia estudar, e nesse caso que curso seguir. Horrorizava-me a perspectiva do serviço militar por me parecer impossível suportar a sua disciplina, eu que nem uma simples conversa conseguia aguentar!
Quanto a doutrinas e demais construções ideológicas, estava possuído de uma indescritível repugnância por quaisquer deduções lógicas e só queria era contemplar, sem pensar em absolutamente nada. Possuíam-me sensações místicas e estéticas tremendamente exageradas e tudo me emocionava extraordinariamente. Passeava e ouvia música; era só o que conseguia fazer.
Estava completamente desenraizado. As únicas pessoas com quem me relacionava eram a Dora, os meus tios de Lisboa e o Rui. Acontecia-me um fenómeno estranho: sentia uma dupla emoção de aversão e de simpatia por todas as pessoas, como se tivesse o coração cortado em dois. Procurava pessoas mas não conseguia estar com elas muito tempo, queria companhia mas não suportava ninguém.
Tinha, de facto, todos os sintomas de um esgotamento cerebral grave, de uma depressão.
Eu fui condenado a 22 meses de prisão correccional suspensa por cinco anos, quase no limite do que era suspendível, privação de direitos políticos igualmente por cinco anos, e ao pagamento de um imposto de justiça e das custas judiciais (cerca de 800 euros de 2006). Foram expressamente consideradas como atenuantes a colaboração prestada na instrução do processo e a vontade manifestada de “reintegração na sociedade”, coisa que o jornal “República” noticiou com todas as letras.
O Rui e o Filipe foram condenados a 18 meses de prisão correccional suspensa por três anos, privação de direitos políticos por cinco anos e ao pagamento de custas e multa no valor de 480 euros actuais. Como atenuante foi-lhes considerada a condição económica e, relativamente à absolvição pedida pelos respectivos advogados, os juízes observaram que os réus não tinham contestado os volumosos autos de declarações prestadas na instrução do processo e que, portanto, os factos eram dados como provados.
Finalmente o João Pedro foi condenado a dois anos e meio de prisão maior, como pretendia, e à perda de direitos políticos por quinze anos; como agravante foi-lhe considerado o seu comportamento no Tribunal.
Tudo isto constou do corpo do processo, o processo-crime contra a segurança do Estado n.º 76/A – 73 arquivado no 1º Juízo Criminal do Tribunal da Boa Hora.
E assim saímos do Tribunal em liberdade eu, o Rui e o Filipe. Sofrera eu dez meses de prisão celular e eles oito meses e meio.
Saí da Cadeia completamente arrasado do sistema nervoso. Não conseguia falar mais de meia hora sem ter de me deitar, por causa das náuseas que me invadiam. Não conseguia ler, nem conversar, nem ver TV, e quando tentei ver cinema pela primeira vez quase enlouqueci. Também é verdade que o filme que fui ver era “A Máscara”, de Ingmar Bergman...
Tinha crises de terrível ansiedade seguidas de quebras de fadiga tais que quase não conseguia arrastar as pernas. Aliás, durante quinze dias elas doeram-me, devido à perda do hábito de andar no regime de prisão celular em que vivera. A única coisa que me aguentava eram os anseolíticos que eu poupara na Cadeia e que trouxera, continuando a tomá-los.
Estava completamente confuso das ideias. Aliás, estava extremamente sugestionável a quaisquer ideias! Não sabia se devia estudar, e nesse caso que curso seguir. Horrorizava-me a perspectiva do serviço militar por me parecer impossível suportar a sua disciplina, eu que nem uma simples conversa conseguia aguentar!
Quanto a doutrinas e demais construções ideológicas, estava possuído de uma indescritível repugnância por quaisquer deduções lógicas e só queria era contemplar, sem pensar em absolutamente nada. Possuíam-me sensações místicas e estéticas tremendamente exageradas e tudo me emocionava extraordinariamente. Passeava e ouvia música; era só o que conseguia fazer.
Estava completamente desenraizado. As únicas pessoas com quem me relacionava eram a Dora, os meus tios de Lisboa e o Rui. Acontecia-me um fenómeno estranho: sentia uma dupla emoção de aversão e de simpatia por todas as pessoas, como se tivesse o coração cortado em dois. Procurava pessoas mas não conseguia estar com elas muito tempo, queria companhia mas não suportava ninguém.
Tinha, de facto, todos os sintomas de um esgotamento cerebral grave, de uma depressão.
A legitimidade revolucionária
Eram 11 horas da manhã do dia 17 de Outubro de 1974 e a minha mãe tinha posto o almoço ao lume, quando dois homens novos à paisana bateram à porta e perguntaram por mim. Mostrando-se simpático, um deles disse-me que queriam que os acompanhasse para esclarecer uns assuntos ocorridos durante a minha prisão pela PIDE.
Dado o ar descontraído com que falavam, perguntei se era coisa suficientemente rápida para que valesse a pena a minha mãe deixar o almoço que estava a fazer à minha espera, e eles responderam-me que sim, que o almoço podia esperar. Desci as escadas e entrei num carro que estava à porta e dirigimo-nos, trocando poucas palavras, a um quartel em Lisboa em cuja parada o automóvel estacou e onde me pediram que descesse.
O quartel era o de Lanceiros-2, perto da Ajuda, sede na altura da Polícia Militar e co-dirigido pelo major Tomé, um dos oficiais do MFA que já aderira ao marxismo-leninismo. Estes oficiais, como toda a gente, andavam agora a descobrir a política e a fazer a sua opção partidária e, dado o namoro que a esquerda revolucionária lhes fazia e a espantosa agitação popular que o seu golpe de Estado tinha desencadeado, muitos deles eram facilmente conquistados por causas fantásticas e passavam a imaginar-se revolucionários.
Após esperar de pé na parada alguns minutos, aproximou-se um jipe da Polícia Militar e dirigiu-se-me um jovem oficial que me pediu para subir para a viatura e me disse:
- Esteve preso em Caxias ainda não há muito tempo, não esteve? Então já não vai estranhar!...
O jipe arrancou e só então é que percebi que estava preso. Ninguém me disse concretamente porquê, nem me mostrou nenhum mandato de captura, e todos tinham um ar trocista e bem disposto. Um dos jovens, o mais alto, conhecia-o de vista perfeitamente porque era de Queluz. Lembrava-me bem de que ele pertencia a um grupo que costumava parar no café central da vila, onde eu por vezes passava nas minhas actividades clandestinas e parava uns minutos a jogar bilhar, tentando aparentar um ar de jovem vulgar para enganar a PIDE. Era um grupo de rapazes ruidosos que só se interessavam por carros, cervejas e miúdas, que nem trabalhava nem estudava, e que na altura eu considerava serem malta sem interesse político. Era pois um desses que, tendo andado a gozar despreocupadamente a juventude enquanto eu me sacrificava pela causa da revolução, agora me prendia em nome da revolução!...
Ao chegar a Caxias fui levado pelos corredores que já conhecia e metido numa das celas grandes do antigo “regime normal”, daquelas que no tempo da PIDE, oito meses antes, tinham até seis pessoas. Porém, agora, haviam sido montados beliches e havia uns quinze homens por cela. E outra surpresa: os guardas prisionais eram os mesmos!
Os guardas que tinham um sorriso trocista enquanto me levavam para a carrinha da PIDE que me transportava até ao Reduto Sul para os interrogatórios, o guarda Nelson que batera o postigo para me não deixar dormir na tarde do dia 23 de Maio do ano anterior, até o chefe Palma, que testemunhara como me levaram para o Reduto Sul já depois de instruído o processo, que tantas diatribes vociferara contra os outros presos quando eu fora chamado ao Director da Cadeia com ele presente, que me levara ao encontro na prisão em que a PIDE me havia dito como me portar no julgamento, o chefe Palma continuava a ser o mesmo chefe dos mesmos guardas! Como era possível esta gente continuar no mesmo posto e eu também, na mesma relação de eles carcereiros e eu preso?
Um dos guardas, ao reconhecer-me, disse-me:
- Olhe, nós aqui já vimos de tudo. Já cá tivemos presos que agora são ministros, e os ministros de então são agora nossos presos! Hão-de ser sempre precisos guardas para os presos políticos e esta é a nossa profissão...
Mas também os juízes do Tribunal Plenário que me tinham julgado e obedecido às instruções da PIDE condenando-me, ainda que a uma pena branda, também eles continuavam em serviço, como se fossem só meros juízes. Mas e eu, que me opusera ao regime e passara ali dez meses tão maus, é que era punido e por não ter sido herói? Mas e todos os outros que também o não tinham sido? Ou haveria alguma outra coisa envolvida naquela prisão? De que me acusariam ao certo?
Nos dias seguintes à minha prisão procurei nos jornais, que as famílias levavam, notícias do que estava a acontecer. E alguns noticiaram a minha prisão. O “Século”, por exemplo, informou: “Ex-preso novamente detido: Nas últimas horas deu entrada numa das celas de Caxias José Luís Pinto de Sá, também suspeito de actividades reaccionárias. Curiosamente, Pinto de Sá já havia estado preso em Caxias, antes do 25 de Abril, portanto à ordem da PIDE/D-GS, tendo então sido julgado e absolvido”.
Dado o ar descontraído com que falavam, perguntei se era coisa suficientemente rápida para que valesse a pena a minha mãe deixar o almoço que estava a fazer à minha espera, e eles responderam-me que sim, que o almoço podia esperar. Desci as escadas e entrei num carro que estava à porta e dirigimo-nos, trocando poucas palavras, a um quartel em Lisboa em cuja parada o automóvel estacou e onde me pediram que descesse.
O quartel era o de Lanceiros-2, perto da Ajuda, sede na altura da Polícia Militar e co-dirigido pelo major Tomé, um dos oficiais do MFA que já aderira ao marxismo-leninismo. Estes oficiais, como toda a gente, andavam agora a descobrir a política e a fazer a sua opção partidária e, dado o namoro que a esquerda revolucionária lhes fazia e a espantosa agitação popular que o seu golpe de Estado tinha desencadeado, muitos deles eram facilmente conquistados por causas fantásticas e passavam a imaginar-se revolucionários.
Após esperar de pé na parada alguns minutos, aproximou-se um jipe da Polícia Militar e dirigiu-se-me um jovem oficial que me pediu para subir para a viatura e me disse:
- Esteve preso em Caxias ainda não há muito tempo, não esteve? Então já não vai estranhar!...
O jipe arrancou e só então é que percebi que estava preso. Ninguém me disse concretamente porquê, nem me mostrou nenhum mandato de captura, e todos tinham um ar trocista e bem disposto. Um dos jovens, o mais alto, conhecia-o de vista perfeitamente porque era de Queluz. Lembrava-me bem de que ele pertencia a um grupo que costumava parar no café central da vila, onde eu por vezes passava nas minhas actividades clandestinas e parava uns minutos a jogar bilhar, tentando aparentar um ar de jovem vulgar para enganar a PIDE. Era um grupo de rapazes ruidosos que só se interessavam por carros, cervejas e miúdas, que nem trabalhava nem estudava, e que na altura eu considerava serem malta sem interesse político. Era pois um desses que, tendo andado a gozar despreocupadamente a juventude enquanto eu me sacrificava pela causa da revolução, agora me prendia em nome da revolução!...
Ao chegar a Caxias fui levado pelos corredores que já conhecia e metido numa das celas grandes do antigo “regime normal”, daquelas que no tempo da PIDE, oito meses antes, tinham até seis pessoas. Porém, agora, haviam sido montados beliches e havia uns quinze homens por cela. E outra surpresa: os guardas prisionais eram os mesmos!
Os guardas que tinham um sorriso trocista enquanto me levavam para a carrinha da PIDE que me transportava até ao Reduto Sul para os interrogatórios, o guarda Nelson que batera o postigo para me não deixar dormir na tarde do dia 23 de Maio do ano anterior, até o chefe Palma, que testemunhara como me levaram para o Reduto Sul já depois de instruído o processo, que tantas diatribes vociferara contra os outros presos quando eu fora chamado ao Director da Cadeia com ele presente, que me levara ao encontro na prisão em que a PIDE me havia dito como me portar no julgamento, o chefe Palma continuava a ser o mesmo chefe dos mesmos guardas! Como era possível esta gente continuar no mesmo posto e eu também, na mesma relação de eles carcereiros e eu preso?
Um dos guardas, ao reconhecer-me, disse-me:
- Olhe, nós aqui já vimos de tudo. Já cá tivemos presos que agora são ministros, e os ministros de então são agora nossos presos! Hão-de ser sempre precisos guardas para os presos políticos e esta é a nossa profissão...
Mas também os juízes do Tribunal Plenário que me tinham julgado e obedecido às instruções da PIDE condenando-me, ainda que a uma pena branda, também eles continuavam em serviço, como se fossem só meros juízes. Mas e eu, que me opusera ao regime e passara ali dez meses tão maus, é que era punido e por não ter sido herói? Mas e todos os outros que também o não tinham sido? Ou haveria alguma outra coisa envolvida naquela prisão? De que me acusariam ao certo?
Nos dias seguintes à minha prisão procurei nos jornais, que as famílias levavam, notícias do que estava a acontecer. E alguns noticiaram a minha prisão. O “Século”, por exemplo, informou: “Ex-preso novamente detido: Nas últimas horas deu entrada numa das celas de Caxias José Luís Pinto de Sá, também suspeito de actividades reaccionárias. Curiosamente, Pinto de Sá já havia estado preso em Caxias, antes do 25 de Abril, portanto à ordem da PIDE/D-GS, tendo então sido julgado e absolvido”.
As prisões da revolução
Embora não parecesse um homem de acção, Gagean era um homem respeitado pelos agentes da PIDE e por Múrias. É que sabia-se que a “super-PIDE” fora o organismo de Santos Costa e Salazar para espiar os próprios dirigentes da polícia política, cuja venalidade não só os levava por vezes a aboletarem-se com o dinheiro do saco azul destinado aos informadores como a tornarem-se espiões dos serviços secretos estrangeiros, a quem vendiam por tuta e meia as próprias informações que a PIDE obtinha. Era notório que Gagean conhecera muita gente desses Serviços Secretos estrangeiros e até estagiara na sede da CIA nos EUA, mas o seu salazarismo idealista afigurava-se incorruptível. Engenheiro Electrotécnico, fora um matemático e físico teórico brilhante, nos anos 40, e partilhava esses atributos com um amor pela Filosofia que era o que o levava a gostar de conversar comigo, embora fosse um católico convicto.
Os agentes da PIDE, entretanto, não escondiam a raiva que sentiam pelos militares, mais do que por quaisquer outros. Achavam que eles os tinham traído, tendo em conta a guerra conjunta travada em África em que as suas informações frequentemente os tinham poupado a emboscadas e outras más surpresas, diziam. E, na verdade, muitos militares tinham face a eles um sentimento de culpa que mais tarde procuraria forma de os compensar pela deslealdade que sentiam ter sido o prendê-los.
Vivia-se um tempo de expectativa quando, no dia 11 de Março, estava eu no recreio e dei por que havia caças a jacto em voo rasante sobre Lisboa. Minutos depois o Armando apareceu com instruções para eu o acompanhar. Levou-me pelos corredores até uma velha cela abandonada na cave onde me disse que eu teria de ficar até nova ordem. Eles sabiam, de facto, que estava em curso uma tentativa de golpe de Estado – desta vez, sim, era mesmo um golpe de Estado e não uma “inventona” – e por isso me punham sob custódia, para o que desse e viesse. Foi por poucas horas porque o golpe falhou, mas não esqueci essa irónica ocorrência de ter sido detido pela PIDE quando já estava preso pelo MFA...
Nessa mesma noite uma Assembleia do MFA iniciou a nacionalização geral de todas as grandes empresas, da Banca às fábricas, e todos os spinolistas que não fugiram para o estrangeiro tiveram ordem de prisão e de expropriação dos bens pessoais. A Revolução, em vez de ser travada, acelerara impetuosamente.
Os agentes da PIDE, entretanto, não escondiam a raiva que sentiam pelos militares, mais do que por quaisquer outros. Achavam que eles os tinham traído, tendo em conta a guerra conjunta travada em África em que as suas informações frequentemente os tinham poupado a emboscadas e outras más surpresas, diziam. E, na verdade, muitos militares tinham face a eles um sentimento de culpa que mais tarde procuraria forma de os compensar pela deslealdade que sentiam ter sido o prendê-los.
Vivia-se um tempo de expectativa quando, no dia 11 de Março, estava eu no recreio e dei por que havia caças a jacto em voo rasante sobre Lisboa. Minutos depois o Armando apareceu com instruções para eu o acompanhar. Levou-me pelos corredores até uma velha cela abandonada na cave onde me disse que eu teria de ficar até nova ordem. Eles sabiam, de facto, que estava em curso uma tentativa de golpe de Estado – desta vez, sim, era mesmo um golpe de Estado e não uma “inventona” – e por isso me punham sob custódia, para o que desse e viesse. Foi por poucas horas porque o golpe falhou, mas não esqueci essa irónica ocorrência de ter sido detido pela PIDE quando já estava preso pelo MFA...
Nessa mesma noite uma Assembleia do MFA iniciou a nacionalização geral de todas as grandes empresas, da Banca às fábricas, e todos os spinolistas que não fugiram para o estrangeiro tiveram ordem de prisão e de expropriação dos bens pessoais. A Revolução, em vez de ser travada, acelerara impetuosamente.
A reconquista das almas e o fim da revolução
Daí em diante viveria os longos meses de prisão que ainda me esperavam com o coração na situação simétrica da vivida na prisão anterior: por fora, para os companheiros de prisão, aparentava discordar como eles da revolução em curso, mas no íntimo identificava-me de alma e coração com ela, em particular com a UDP em que militavam agora os meus velhos camaradas, devidamente expurgados dos antigos oportunistas que esses, sim, é que tinham sido responsáveis pela minha degenerescência. Só que isto não apagava a minha responsabilidade pessoal na traição que cometera e, por isso, tinha de encarar a questão de como poderia a minha previsível morte às mãos da revolução ser ainda útil a essa mesma revolução!...
Ora na Penitenciária, por essa altura, já tudo se preparava para o grande momento em que se iniciasse a guerra civil e os fuziladores nos viessem buscar. Uma imagem me vinha recorrentemente à mente, a ser conduzido para o pátio do recreio para aí ser executado junto à casa das caldeiras.
Conspirava-se na prisão, portanto. Era claro que os presos da PIDE e demais contra-revolucionários elaboravam planos de fuga e de motim e que tinham ligações ao exterior, constando que eram as Brigadas Revolucionárias quem do lado da revolução tinha a incumbência de nos fuzilar quando começasse a guerra civil. Porém, esta actividade conspiratória para a defesa da prisão não abrangia todos: a maioria dos provocadores infiltrados no PCP, espantosamente para quem não sabe como alguém se torna provocador, mantinha-se crente no comunismo e fiel ao Partido e organizava-se clandestinamente, por sua vez, segundo os esquemas tradicionais. Visando, naturalmente, servir ainda a velha causa de que, se alguma vez tinham duvidado, tinham agora a evidência nas ruas da sua força e apoio popular. Por isso vigiavam os outros presos e mantinham-se em contacto com a 5ª Divisão, o organismo de Informações militares que o PCP controlava, fazendo-lhe chegar todas as informações que consideravam úteis e preparando-se para, quando chegasse a hora, defrontar a PIDE e os seus planos de fuga e rebelião. Claro que não estendiam a sua trincheira aos que não tivessem sido do Partido, e por isso me excluíam. E colocavam no mesmo lado inimigo também os marxistas-leninistas, como se provava pelo facto de terem feito chegar ao Partido as fichas prisionais de Martins Rodrigues e d’Espinay que tinham sido encontradas na Penitenciária, devido ao seu processo de delito comum pela execução com um tiro na nuca do provocador Mateus nas matas de Belas. E alguns registos prisionais que revelavam que Pulido Valente, o herói do CM-LP que fora o único a resistir com sucesso à tortura da PIDE em 1965, estivera preso antes devido ao crime de “estupro de uma menor”...
Naturalmente os ex-agentes da PIDE, por sua vez, vigiavam estes elementos e em breve os começaram a ameaçar veladamente e a dar-lhes a entender o fim que lhes destinavam, criando uma tensão que só se reduziu quando os dois cabecilhas da organização revisionista foram inopinadamente transferidos para outra prisão. Por iniciativa de quem, nunca soube! Mas é duvidoso que, caso a Revolução triunfasse, os esperasse boa sorte, visto que alguém ouvira dizer aos militares da “Comissão de Extinção” que, quando chegasse a hora, os antigos membros do Partido “seriam os primeiros”...
Ora na Penitenciária, por essa altura, já tudo se preparava para o grande momento em que se iniciasse a guerra civil e os fuziladores nos viessem buscar. Uma imagem me vinha recorrentemente à mente, a ser conduzido para o pátio do recreio para aí ser executado junto à casa das caldeiras.
Conspirava-se na prisão, portanto. Era claro que os presos da PIDE e demais contra-revolucionários elaboravam planos de fuga e de motim e que tinham ligações ao exterior, constando que eram as Brigadas Revolucionárias quem do lado da revolução tinha a incumbência de nos fuzilar quando começasse a guerra civil. Porém, esta actividade conspiratória para a defesa da prisão não abrangia todos: a maioria dos provocadores infiltrados no PCP, espantosamente para quem não sabe como alguém se torna provocador, mantinha-se crente no comunismo e fiel ao Partido e organizava-se clandestinamente, por sua vez, segundo os esquemas tradicionais. Visando, naturalmente, servir ainda a velha causa de que, se alguma vez tinham duvidado, tinham agora a evidência nas ruas da sua força e apoio popular. Por isso vigiavam os outros presos e mantinham-se em contacto com a 5ª Divisão, o organismo de Informações militares que o PCP controlava, fazendo-lhe chegar todas as informações que consideravam úteis e preparando-se para, quando chegasse a hora, defrontar a PIDE e os seus planos de fuga e rebelião. Claro que não estendiam a sua trincheira aos que não tivessem sido do Partido, e por isso me excluíam. E colocavam no mesmo lado inimigo também os marxistas-leninistas, como se provava pelo facto de terem feito chegar ao Partido as fichas prisionais de Martins Rodrigues e d’Espinay que tinham sido encontradas na Penitenciária, devido ao seu processo de delito comum pela execução com um tiro na nuca do provocador Mateus nas matas de Belas. E alguns registos prisionais que revelavam que Pulido Valente, o herói do CM-LP que fora o único a resistir com sucesso à tortura da PIDE em 1965, estivera preso antes devido ao crime de “estupro de uma menor”...
Naturalmente os ex-agentes da PIDE, por sua vez, vigiavam estes elementos e em breve os começaram a ameaçar veladamente e a dar-lhes a entender o fim que lhes destinavam, criando uma tensão que só se reduziu quando os dois cabecilhas da organização revisionista foram inopinadamente transferidos para outra prisão. Por iniciativa de quem, nunca soube! Mas é duvidoso que, caso a Revolução triunfasse, os esperasse boa sorte, visto que alguém ouvira dizer aos militares da “Comissão de Extinção” que, quando chegasse a hora, os antigos membros do Partido “seriam os primeiros”...
Resposta a José Manuel Fernandes
A propósito de “Conquistadores de Almas”, livro de que sou autor, foram abundantes as apreciações em jornais e em blogs, quase sempre positivas. No entanto, recentemente manifestaram-se algumas apreciações de ex-maoístas de militância contemporânea da minha, originando um debate que tem tido em José Manuel Fernandes (JMF) o principal protagonista.
Como mostrarei no seguimento, o acinte dos ataques pessoais que JMF me dirigiu, no jornal de grande prestígio e audiência que dirige, é um eco das acusações de que fui objecto na imprensa marxista-leninista durante o PREC. A publicação do meu livro, 1/3 de século depois, é em boa parte a divulgação da defesa que me foi então impossível. Voluntariamente ou não, a crítica de JMF exprime a vontade que terão hoje alguns dos que então me atacaram sem me reconhecerem direito de defesa e que, não duvido, gostariam que continuasse mudo e quedo para sempre. Os tempos são outros, porém. No que se segue, refutarei por isso algumas dessas acusações, para discutir depois questões mais gerais suscitáveis pelo livro e que são agora oportunas.
Comecemos, pois, por algumas das afirmações pontuais de JMF que não têm qualquer fundamento, nem na leitura do livro, nem na realidade dos factos.
1. Diz JMF que cresci num “ambiente pequeno-burguês”. Ora como relato no livro, sou filho e neto de operários, embora vivendo num meio colonial que os permite definir, segundo a teoria leninista, como “aristocratas operários”. Porém, a caracterização essencial desse ambiente não se encaixa nas classificações “de classe” marxistas-leninistas (m-l), mas sim e especificamente na cultura colonial do interior profundo africano.
2. Segundo JMF, eu era tímido e foi por isso que me reduzi a tarefas de bastidores na militância m-l; ora JMF confunde nesta apreciação vários momentos. Em primeiro lugar, a minha timidez política nos primeiros dois anos de Universidade resultava antes de mais do desconhecimento das razões ocultas das directivas associativas. Em segundo lugar, de uma incapacidade moral de manipular os estudantes, conduzindo-os em acções de luta que me era óbvio serem contrárias aos seus interesses, que aliás desprezava. Recordando os meus colegas associativos mais próximos da altura, verifico que essa timidez era comum aos que tinham uma (in)experiência similar à minha, e que só os mais velhos ou com formação política antecedente sabiam o que dizer às “massas”.
Por outro lado, no ano e meio seguinte, em que já tinha outra formação ideológica e efectivamente desenvolvi acções de bastidores no movimento estudantil, a principal razão disso foi o ter então como actividade principal e prioritária a militância com operários, que era clandestina e exigia discrição.
3. Afirma também JMF, referindo-se às fragilidades afectivas expostas no livro, que em matéria de sexo eu “é que era diferente e tinha problemas afectivos”. Ora, se é verdade que aos 17-20 anos eu padecia de uma ignorância e insegurança flagrantes nesse domínio, é fácil verificar que a solidão sexual que testemunho não era incomum. Basta recordar, mais uma vez, os meus colegas associativos da época (no Instituto Superior Técnico sempre houve poucas raparigas...) para constatar que, entre os da minha idade, a solidão sexual era mais regra que excepção; que, por exemplo, dos onze jovens ligados aos CCRM-L e presos em 1972-73, seis não tinham relacionamentos afectivo-sexuais. Como noutros aspectos destas memórias, o facto de eu relatar o sofrimento correspondente não significa que ele fosse raro e que eu “fosse diferente». Claro que todos éramos diferentes, mas o que interessa sublinhar era o descuido da vida pessoal inerente à militância em que participei.
4. No seu segundo artigo contra mim, de 27 de Agosto, JMF faz-me um ataque que é um primor de mentira, jogo de palavras e má fé. Depois de dizer que a minha traição não era a regra mas a excepção, acrescenta que “mesmo o outro informador da PIDE que estava infiltrado entre os estudantes esquerdistas e que ele conheceu na prisão depois do 25 de Abril, para além de o identificar mal, “passou-se” para a polícia por motivos que nunca apurei mas nada tiveram a ver com os seus, porventura ainda foram mais ignóbeis”.
Em primeiro lugar, esclareçamos duas mentiras factuais: a) esse estudante, informador da PIDE infiltrado no PCP(m-l) de que JMF era militante, está correctamente identificado no livro (pág. 282); b) nunca conheci pessoalmente esse indivíduo, por nunca termos partilhado o mesmo espaço prisional durante o PREC!
Em segundo lugar, esse indivíduo não se “passou” para a PIDE: era da PIDE, à qual se oferecera livre e voluntariamente! Ao igualar “passar-se” sob tortura para a PIDE, isto é, a submissão à sua violência no confinamento da sua prisão, com uma inscrição livre e voluntária na sede da polícia, e ao referir expressamente esse informador da PIDE como “o outro”, JMF está sem rebuços a repetir as práticas do PREC com que colaborou na altura, enquanto militante m-l e da UDP! Ora convém notar que os juristas que propuseram o arquivamento do processo que me foi instaurado no PREC se basearam precisamente nessa diferença de contextos! Uma coisa era ter-se inscrito livre e voluntariamente como informador na sede da PIDE, pertencendo aos respectivos quadros como o uso de pseudônimo e o reporte a elementos da Direcção de Informações o provava; outra coisa era colaborar com a polícia estando preso por ela, informando o mesmo elemento da Direcção de Investigações (a que torturava) que dirigira os autos processuais, obtidos comprovadamente sob coacção, e nos mesmos termos em que estes haviam sido manuscritos! Só quem considerava Trotsky tão "inimigo do povo" como Hitler pode comparar estas situações!
De um modo geral, a crítica de JMF pouco tem realmente a ver com o conteúdo do livro e é uma demonstração da incomodidade que ele provoca. É, portanto, oportuno discutir alguns aspectos do que está em causa quer no livro, quer nas críticas de JMF.
Começando pela questão central da traição perante a violência da PIDE, é de esclarecer as razões por que se abjecta a traição, as quais se situam em duas instâncias: morais e políticas.
A abjecção moral, segundo os valores correntes, existe quando na traição se logra uma vantagem pessoal em prejuízo daqueles a quem se deve lealdade. Quando, por exemplo, um militante troca a sua liberdade pessoal pela prisão de camaradas. Traições houve, perante a PIDE, que propiciaram emprego e exílio pago causando centenas de prisões. Este é o tipo de traição para o qual é previsto o mais duro dos castigos por todos os regulamentos militares de sempre e que obedece ao paradigma da traição de Judas.
Numa perspectiva extremista e radical, porém, é traição mesmo a simples troca de um alívio momentâneo da tortura por qualquer informação prestada aos torcionários que cause algum dano à causa do torturado. Esta posição era, por exemplo, a dos CCRM-L em que eu militei e ainda é perfilhada por alguns, invariavelmente com a intolerância de quem nunca foi posto à prova. Intolerância imprópria da moral cristã, por exemplo, que se condena Judas perdoa a Pedro a sua tripla negação da condição de apóstolo por medo da prisão, e que nem a rígida ortodoxia do PCP de Cunhal praticava (ainda que considerando tal nível de traição, classificado como “fraqueza”, indigna da pertença à “vanguarda” revolucionária do Partido clandestino).
Entre estes extremos de traição situa-se muitos graus de fraqueza moral, e a tolerância que suscitam depende da atitude perante a pessoa humana de quem julga. Ora é de assinalar que todos os que se conservaram meus amigos durante a minha prisão pelo PREC eram de esquerda. De facto, a moral corrente é compassiva com a traição praticada em condições de coacção, e um bom exemplo disso foi a posição de Guterres e de Ramos Horta de continuarem a apoiar e a encorajar Xanana Gusmão mesmo após este, preso pelos militares indonésios, se ter deixado filmar para todo o mundo a confraternizar com os seus torcionários e a dizer que “também era indonésio”, o que acabou por efectivamente recuperar Xanana para a causa independista. Vale a pena notar, já agora, que posição oposta manifestou na altura o PCP ao denunciar publicamente Xanana como traidor, e que a ter o povo português apoiado tal postura certamente que Timor não teria alcançado tão cedo a liberdade...
Por outro lado, de um ponto de vista político a traição é abjecta, mesmo quando praticada por idealismo e desinteressadamente, se for consensual a natureza malsã da causa que servir. JMF pensa ser óbvio que a escondida juvenil adesão de Gunter Grass às SS ou a minha colaboração juvenil com a PIDE, quando preso por esta, merecem tal abjecção, apesar da sua própria evolução de m-l albanista em 1979 para bushista convicto em 2003. Parece também não se ter desfeito da intolerância perante o “erro” alheio de que foi praticante quando era estalinista, intolerância que se aplicasse a si próprio certamente não lhe permitiria dizer o que diz. Mais uma vez, e a título de referência moral, ocorre evocar a atitude cristã perante os erros passados, ilustrada no convite por Cristo a que “atirasse a primeira pedra quem nunca tivesse pecado”...
Vale ainda a pena notar que há por vezes contradição entre o julgamento moral e o político de uma traição. As FP-25, por exemplo, que já em democracia praticaram múltiplos assassinatos e outras violências, só foram desmanteladas graças à traição de alguns “arrependidos” que parece terem tido motivos pouco nobres para tal. E a obtenção de traições de membros da Al Qaeda que possa evitar assassinatos maciços contra civis inocentes é hoje uma questão que não oferecerá grandes dúvidas.
Postas estas considerações, é agora de clarificar como os métodos de tortura da PIDE, em 1973, podiam conduzir à “conquista das almas” ou, usando uma linguagem m-l, à resolução de contradições pessoais no sentido favorável ao regime colonial-fascista.
No processo de tortura a que fui submetido pela PIDE, em que comecei a prestar declarações ao 23º dia de prisão, a pior parte foram os 20 dias de terror e ansiedade em que esperei, em isolamento e privação sensorial, pela “minha vez” de pancada e torturas do sono e estátua. Quando estas chegaram, eu já estava esgotado pelo terror e pela ansiedade prolongados.
Para quem nada sabe disto como JMF, isto pode parecer cobardia “abjecta”. E no entanto, veja-se o que diz o “relatório Kubark”, o manual da CIA publicado internamente em 1963 (desclassificado há poucos anos): “The threat of coercion usually weakens or destroys resistance more effectively than coercion itself. The threat to inflict pain, for example, can trigger fears more damaging than the immediate sensation of pain. In fact, most people underestimate their capacity to withstand pain. The same principle holds for other fears: sustained long enough, a strong fear of anything vague or unknown induces regression, whereas the materialization of the fear, the infliction of some form of punishment, is likely to come as a relief. The subject finds that he can hold out, and his resistances are strengthened. In general, direct physical brutality creates only resentment, hostility, and further defiance. “
E porquê o violento terror e a ansiedade que sofri naqueles dias? Em primeiro lugar, pela convicção de que só raríssimos tinham conseguido resistir à tortura nos anos anteriores, como está claramente narrado no livro! Esse era precisamente o indício mais claro do que me esperava, considerando o grau de incriminação das provas contra mim na posse da PIDE. JMF acusa-me de “vestir o papel de vítima para mostrar que trair era normal”; ora para além do descabimento desta acusação, se é verdade que no livro vou descrevendo, antes de ser torturado, como estava convencido de que a derrota perante a PIDE era a regra, essa convicção era genuína e viria a ser precisamente a razão principal do terror que viveria na prisão! E é também verdade que todos os m-l que depois conheci, ou de cuja prisão tive conhecimento detalhado, cederam nos interrogatórios da PIDE. Os seus autos existem! JMF diz que “conserva muitos amigos que resistiram” (à tortura); presumo que sejam ex-camaradas seus m-l. Pois eu nunca conheci pessoalmente nenhum m-l que tivesse resistido com sucesso, embora admita que existam, ainda que relativamente a alguns com dúvidas quanto ao grau de tortura que sofreram! “Resistir” para depois ser vencido, isso também eu resisti, como é documentalmente comprovável pelo conteúdo e datas dos autos arquivados na torre do Tombo e como foi expressamente reconhecido pelos juristas que propuseram o arquivamento do meu processo instaurado no PREC.
Certo é que essa ansiedade, no ambiente de confinamento celular e de privação sensorial em que estive, produziu um efeito terrível. Nada de invulgar, se tivermos em conta o que sobre tal situação afirma o “relatório Kubark”: “The more completely the place of confinement eliminates sensory stimuli, the more rapidly and deeply will the interrogatee be affected. … An early effect of such an environment is anxiety. The interrogator can benefit from the subject's anxiety. As the interrogator becomes linked in the subject's mind with the reward of lessened anxiety, human contact, and meaningful activity, and thus with providing relief for growing discomfort, the questioner assumes a benevolent role. (7)4. The deprivation of stimuli induces regression by depriving the subject's mind of contact with an outer world and thus forcing it in upon itself. At the same time, the calculated provision of stimuli during interrogation tends to make the regressed subject view the interrogator as a father-figure. The result, normally, is a strengthening of the subject's tendencies toward compliance.”
A narrativa da minha experiência pessoal é um exemplo perfeito da aplicação desta teoria! No entanto, devo dizer que só conheci o relatório Kubark há pouco tempo, já o livro estava publicado...
Depois daquelas semanas de terror e ansiedade esgotantes, vieram finalmente os interrogatórios que, como o referido relatório também recomenda, centravam a violência na fadiga (sono, estátua) e no pavor. O objectivo destes processos é taxativamente expresso no sumário do relatório: “All coercive techniques are designed to induce regression. ...3. The usual effect of coercion is regression. The interrogatee's mature defenses crumbles as he becomes more childlike. During the process of regression the subject may experience feelings of guilt, and it is usually useful to intensify these. 4. When regression has proceeded far enough so that the subject's desire to yield begins to overbalance his resistance, the interrogator should supply a face-saving rationalization. Like the coercive technique, the rationalization must be carefully chosen to fit the subject's personality. 5. The pressures of duress should be slackened or lifted after compliance has been obtained, so that the interrogatee's voluntary cooperation will not be impeded. ... If the interrogatee remains semi-hostile or remorseful after a successful interrogation has ended, less time may be required to complete his conversion (and conceivably to create an enduring asset) than might be needed to deal with his antagonism if he is merely squeezed and forgotten.”
Toda a experiência pessoal que vivi disto consta no livro, e duvido que venham a surgir outras descrições com igual sinceridade. Primeiro por que já passou 1/3 de século sobre a queda do regime e é quase impossível manter intactas memórias detalhadas após tanto tempo; segundo por que tais experiências são coisas de que a sanidade mental recomenda o esquecimento; e terceiro por que uma derrota destas não era coisa que na altura alguém gostasse de registar por escrito. Se eu o fiz foi só por que a prisão pelo PREC e as acusações então sofridas me obrigaram a encarar a questão!
E, no entanto, apesar de nunca ninguém antes ter contado publicamente como cedeu à tortura, a coincidência entre a teoria do relatório Kubark e a minha experiência deve ser, estou convencido, apenas um exemplo de uma regra geral. Naturalmente, com diferenças pessoais de caso para caso.
O processo de regressão infantilizante provocado pela tortura sobrepunha, portanto, aos laços ideológicos e afectivos criados na militância os com a PIDE e os de origem familiar. Por que é que, no meu caso, isso me reconduziu às convicções colonialistas e à colaboração convicta com a PIDE, durante a prisão?
A fraqueza dos laços m-l está bem documentada no livro, como é reconhecido por Joffre Justino. Justifica-se, porém, que clarifique a força dos laços de origem e os dilemas que criava.
Eu tinha, e mantenho-a hoje de forma clara e assumida, uma identidade fortíssima associada ao interior africano. A África profunda começa por ser completamente diferente de Portugal nos cheiros, nos sons e nos espaços. Depois, havia uma enorme diferença de mentalidades, com aquela em que fui criado a partilhar muitos traços com as de outros países de origem colonial (nomeadamente os EUA): hábitos de autonomia e iniciativa no trabalho, disponibilidade para a entre-ajuda imediata e incondicional, práticas de relacionamento fácil e solidário e um forte sentimento de ligação directa aos resultados do trabalho colectivo. Tudo o que existia – dos hospitais às escolas, passando pelas povoações e locais de trabalho – era fruto directo e pessoal da pequena comunidade em que nasci e cresci. O Estado não tinha lá presença, a não ser pelos aquartelamentos militares de passagem, e Portugal era uma construção ideológica longínqua e as mais das vezes desagradável, presente, por exemplo, na obrigação de estudar minuciosamente floras e geografias que nada tinham a ver com o nosso mundo.
Esta identidade é tão forte que ainda persiste hoje, 1/3 de século passado, para a esmagadora maioria dos que viveram lá algum tempo, traduzida em laços de solidariedade de que muito dificilmente se encontra paralelo em Portugal. Nos últimos anos a internet permitiu a recriação desta comunidade cujos membros se encontram dispersos por todo o mundo, já que não mais de metade conseguiu dolorosamente adaptar-se a viver em Portugal (a maioria dos que se dispersaram radicou-se no continente americano, mas há-os de Moçambique à Austrália). Só para dar uma idéia da identidade de que falo, esta comunidade virtual conta com duas centenas e meia de membros, apesar da região onde crescemos nunca ter tido mais de um milhar de famílias portuguesas, para uma superfície territorial que era metade da de Portugal. Muitas relações pessoais directas foram reconstruídas a partir desta relação virtual e eu até recasei com alguém de lá!
A dupla natureza operária e colonial da minha ascendência familiar (os meus pais e avós viviam em casas lado a lado) reforçava, no meu caso, esse sentimento do direito àquilo que eu testemunhava ser obra nossa, a começar pelos meus pais e avós – como também se descreve no livro. Aliás, um bom exemplo da força desse sentimento ocorreu quando, nos anos 80, a UNITA atacou pela primeira vez a região e raptou os portugueses residentes. Apesar de pouco partidários da ideologia comunista do MPLA de então, os portugueses defenderam as instalações e os raptados voltaram todos logo que foram libertados no Zaire. É que antes de mais sentiam aquilo como obra sua e também lhe pertenciam, e o poder político era-lhes secundário!
Acontecia que antes do 25 de Abril os colonos viam a luta armada independista como destinada a expulsá-los da que se tornara a sua terra, como a chegada (que testemunhei) em estado de choque e fuga desordenada dos vizinhos colonos belgas do Shaba anunciara em 1960, e portanto o regime colonial-fascista não tinha contestação – ainda que alguns colonos, e entre eles o meu avô, operário barreirense, tivessem uma história metropolitana de oposição ao regime e o meu pai também nunca tivesse gostado de Salazar. A presença colonial era vista como justa, os militares destacados para a região eram estimados, e todos crescíamos a pensar que um dia nos caberia naturalmente a obrigação de ir fazer a nossa parte da guerra – com muitos a oferecerem-se para as tropas de élite. A PIDE trabalhava às claras e era aceite socialmente, apesar de com algum embaraço pela memória da sua actividade em Portugal. Havia o sentimento de se pertencer a uma minoria civilizada no meio de uma vastidão de bárbaros e de um mundo que não nos compreendia, sentimento que muito mais tarde descobri ser idêntico ao dos boers sul-africanos e ao dos israelitas.
Neste contexto, é evidente que a minha adesão ao movimento marxista-leninista em Portugal foi a minha primeira traição! Antes de mais perante os meus pais, de quem, recorde-se, ainda dependia completamente, mas também perante os meus amigos de infância e toda aquela comunidade. E de tal maneira tive disso um sentimento de culpa – obviamente despoletado e intensificado pela “lavagem ao cérebro” da PIDE - que, mesmo após a minha tentativa de reparação dessa traição com a outra que o livro narra, só ¼ de século depois retomei contactos e refiz amizades com aqueles que assim traíra – mais facilmente, como se vê, que com os outros, o que só reforça a minha consciência de que é a esta comunidade que pertenço!
Claro que tudo isto era a realidade com que me debati na prisão da PIDE, antes do 25 de Abril. E que mostrou a Historia, depois?
Em primeiro lugar, que a identidade africana desta comunidade a que pertenço é que é determinante, e não a colonial-fascista. Muitos da minha geração tentaram ficar após a independência, “descobrindo” a política e procurando participar na nova realidade independentista. Vários voltaram mesmo a fazer a guerra (civil) ao lado do MPLA, e desses alguns nela tombaram. Outros foram para outras paragens africanas, adaptando-se aos novos regimes políticos e raciais mas não a viver em Portugal. Mas os colonos tinham razão ao pensarem que a derrota na guerra significaria a sua expulsão; todos, mesmo os que aderiram ao MPLA, acabaram por vir embora – com a única excepção da minha amiga São Neto...
Vale a pena entretanto recordar que os dirigentes dos CCRM-L em que militei defendiam a tese de que a independência das colônias significaria um reforço do fascimo em Portugal, devido ao previsível regresso dos colonos reaccionários, que em 1974 a UDP apelava à “repressão sobre os reaccionários brancos” que contestavam a entrega incondicional do poder ao MPLA e, de um modo geral, que a posição dos comunistas portugueses era a de ser melhor que não voltassem. Deve-se ao MFA a protecção e guarida que Portugal deu ao quase meio milhão de refugiados provocados pela descolonização e pelas guerras civis que se lhe sucederam de imediato.
Hoje, passados tantos anos, a memória da opressão racial já se esfumou de um lado e do outro, e com a paz crescem os casos de regresso e cooperação com a nova realidade. Os negros das colônias sentem-se indubitavelmente mais felizes na dignidade que agora têm (embora o poder político ainda padeça de certos preconceitos, mais por conveniência política que por ressentimento racial), e os brancos descobriram que afinal não é necessário um quase-apartheid nem uma ditadura política para poderem lá sentir-se em casa e viverem bem. Para esta distensão muito tem também contribuído a boa aceitação por Portugal dos imigrantes provenientes das ex-colónias e a maciça ajuda internacional prestada às populações daqueles países. É por aí que certamente irá o futuro que a África bem precisa!
Entretanto, e ainda a propósito da “abjecção” imputada por JMF aos que colaboravam com aqueles que reprimiam “os que defendiam as suas idéias”, é oportuno notar que se assiste em muitos ex-maoístas, particularmente nos que depois do 25 de Abril apoiaram activamente o PREC militando na UDP, a uma atitude revisionista do seu ideário de então, branqueado agora de “luta pela liberdade”. Importa recordar que os m-l não lutavam por nada que se parecesse com o regime que a 25 de Abril de 74 lhes caiu no regaço. Os m-l da UDP a que pertenceram JMF e Rui Bebiano tinham por programa a “insurreição popular armada” e a guerra civil que denominavam de “guerra popular”, para já não mencionar que o modelo final de sociedade que preconizavam era o albanês de Enver Hojda! A luta armada que os m-l preconizavam só se distinguia da das BR de Isabel do Carmo e Carlos Antunes por divergências de oportunidade – vanguardista exemplar nas BR, ao estilo castrista, de “massas” nos m-l, segundo o modelo maoísta. E, quando alguns dizem agora, para explicarem como “lutavam pela liberdade”, que “a ditadura do proletariado era vista como a forma mais democrática e mais justa das utopias”, apetece recordar que também o regime anterior via o colonialismo como a forma mais justa de patriotismo, mas que estavam todos enganados. O julgamento político das actividades de há 1/3 de século tem de ser feito à luz do que a História depois ensinou e dos valores de hoje, requerendo a todos a honestidade de chamarem as coisas pelos seus nomes e de evitarem jogos de palavras.
E para terminar, a propósito do revisionismo em curso relativamente ao maoísmo no PREC, convém recordar a JMF que as militâncias de então não foram simples “desvarios juvenis” sem consequências. Tiveram pesadas consequências para muita gente, com co-responsabilidade nas prisões arbitrárias e nos 12 mil “saneados”, passando pelo meio milhão de refugiados das colónias e pelo maior crime: a exportação para Timor, onde nunca houvera contestação à presença portuguesa, de um maoísmo violento, sabendo-se que ao lado, na gigantesca Indonésia, havia um regime fascista que dez anos antes não hesitara em assassinar um milhão de comunistas e seus apoiantes e que jamais toleraria um Timor revolucionário! Maoísmo esse que desencadeou uma guerra civil que por sua vez provocou a invasão genocida indonésia e que, contas feitas, deu origem a duzentos mil mortos (1/3 da população de Timor) e a décadas de sofrimento!
É por isso que indigna ver alguns ex-maoístas, como JMF, agora convertidos ao "sistema" e que de caminho abandonaram, como se não tivesse sido nada, aqueles a quem antes apelavam à revolução (deixando-os em muitos casos em maus lençóis), ainda virem hoje acusar outros de traição “abjecta”...
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